Quando o Senhor Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros expressou vontade de confiar informação altamente classificada ao emérito Embaixador Daniel Casaubon, este, sentado na enorme mesa do Ministério, ajeitou o casaco à solenidade da confidência e disse eu sou um túmulo. E no instante em que o disse, recordou o dia em que, na escola elementar, informou a professora do nome de cada colega que tinha copiado no exame final de matemática, bem como da identidade do autor das frases escatológicas inscritas nas portas das casas de banho e os pesados castigos com que os prevaricadores foram punidos. Lembrou também o instante em que, para obter os favores sexuais de Allegra, se serviu da calúnia, contando-lhe que o seu namorado a enganava repetidas vezes com Clara. Recordou a mágoa com que, goradas as suas intenções, foi dizer ao namorado de Allegra que esta o seduzira oferecendo-lhe as virtudes. Lembrou o cuidado que teve no telefonema, feito anos mais tarde, em que deu a conhecer ao Director da Polícia do país onde permanecia como segundo secretário da Embaixada, a localização exacta de um compatriota procurado pelas autoridades locais. Rememorou de seguida o dia em que, já Embaixador nessa mesma República, em troco de um elevado número de diamantes oferecidos pelo Primeiro Ministro local, recusou asilo político a dezassete opositores ao regime. Passou-lhe pela memória não só a condenação à morte e execução dos ditos desordeiros, mas também o magnífico banquete que lhe foi servido em casa do Primeiro Ministro alguns dias depois: fora a melhor refeição de toda a sua vida. Por fim, deteve-se na breve revisão de, já quase perto da sua reforma, certas acções suas terem sido descobertas pelo seu assistente, e de como, antes que este as transmitisse à tutela, o atraiu ao jardim de Eurídice, na parte baixa da cidade, e ali teve força suficiente para, olhos nos olhos, o apunhalar duas vezes. Lembrou-se ainda da calma inabalável com que lidou com o facto de, ao sair do jardim, ter sido avistado por um passante e o ter alvejado na cabeça à queima roupa. Orgulhou-se da montagem que fez de um insuspeito cenário de crime passional entre entre o dito passante e o seu assistente, simulando o suicídio daquele, facto que, note-se, levou à loucura da sua mulher, abalada pela traição do marido. Ao recordar tudo isto, o emérito embaixador Daniel Casaubon respirou fundo e repetiu, sem vacilar, a frase sabe que eu sou um túmulo e, redita esta, não demonstrou o mais pequeno estado de alteração quando o Senhor Secretário de Estado – cuja ascenção na carreira política e diplomática se devera ao próprio Casaubon, seu protector no Ministério - lhe confessou saber a identidade de quem, na Embaixada na mesmíssima república onde Casaubon fora diplomata durante décadas, traficava jóias, droga e prostitutas para o seu país natal e que apenas lhe faltava saber quem era a sua âncora do lado de cá e que para isso lhe pedia ajuda. Daniel Casaubon, num pensamento que lhe demorou não mais que seis segundos, imaginou a vida difícil que esperava a futura viúva e as três filhas do seu amigo e Secretário de Estado; pensou no passeio digestivo diário deste, que contemplava uma passagem por uma zona menos iluminada da cidade e no recorrente temor que ele, Daniel Casaubon, tinha de falar enquanto dormia. in Faca Romba, Edição da Oficina do Cego, Lisboa, 2012. |