Tempo, distorção, esquecimento: assim se escrevem coisas que lembramos There is never a single approach to something remembered ** John Berger 1. O futuro O futuro da memória é o esquecimento. Chegará o dia em que o mundo deixará de lembrar, em que os versículos do Eclesiastes se cumprirão: “Já não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto daqueles que virão depois deles”[1]. Faltará seguramente muito tempo até lá, mais do que suficiente para que se continue a fazer da memória um combate: um combate contra o esquecimento, um combate pela curiosidade, um combate pelos regressos impossíveis. Resta-nos para isso a vontade de representar o ausente e o apreendido[2], de lembrar, de reconhecer. Antes de prosseguir o caminho, importa elencar sentidos: a memória é uma faculdade biológica (psíquica, neurológica, sensorial), que representa um processo de reflexão[3], pela convocação de algo passado. É também um processo de aprendizagem, de repetição, de rito, de hábito, uma prótese que recorre a ferramentas[4] de gravação – escrita, imagens, electrónica -, um espaço (são da memória os vastos palácios de Santo Agostinho, onde estão tesoiros de inumeráveis imagens[5]), uma arte mnemotécnica e uma faculdade que opera predominantemente pela convocação de imagens[6], mentais ou gráficas: as memórias, que no plural são o que lembramos. E vindo as imagens da imaginação, individual ou colectiva, será por aqui que compreendemos que memória e imaginação são essenciais à sobrevivência da espécie. 2. Lembrar Mitos de Origem do Ocidente Europeu Convoquemos então a imaginação e os mitos de origem para uma lembrança impossível do início das coisas: na Grécia Antiga, Mnemosyne, a deusa da memória, amante de Zeus e mãe de nove musas, oferece aos homens uma tábua de cera para que inscrevam as suas impressões e revela os segredos do passado aos poetas. As musas, cada uma com o seu atributo específico - poesia, eloquência, música, história, hinos, tragédia, dança, astronomia e comédia -, explicam os mistérios aos homens de aprendizagem[7], precisamente num espaço chamado mouseion, o lugar das musas, que o geógrafo Estrabão, na sua Geografia (século VII a. C.), vai colocar como parte do complexo real de Ptolomeu I de Alexandria, ao lado da Biblioteca, naquela que é a mais antiga descrição conhecida de um museu[8]. Pelo seu mito e pelo seu étimo, o museu pode então afirmar-se como uma instituição-memória[9], tal como arquivos e bibliotecas: espaços onde é possível evocar o passado, pela disposição ou existência de testemunhos materiais da passagem dos Homens pelo mundo. 3. Pensar a memória em Guimarães Detenhamo-nos no nome: Casa da Memória de Guimarães. Pese embora esta casa não seja um museu por definição, a abordagem metodológica que se faz ao seu todo segue pelos caminhos da museologia - expondo, partilhando, investigando e conservando património material e imaterial da humanidade e do meio que a envolve. Neste caso, memória de Guimarães. A natureza complexa dos termos propõe que a sua definição e depuração se vá fazendo por aproximações: não há uma memória de Guimarães – nem de nenhum outro lugar. Um exemplo paradigmático: em 1836, a Sociedade Patriótica Vimaranense propôs a demolição do Castelo, para que, com a sua pedra, se calcetassem as ruas da cidade. O Castelo era então de má memória, por ter sido prisão Miguelista. À luz dos dias de hoje, a proposta parece-nos impossível. Mas sob esta mesma luz, a memória colectiva transformou-a num dos mais generalizados equívocos memorialistas – é frequente ouvir-se contar que o Castelo só não veio abaixo por um voto, quando na verdade, dos 19 eleitores, 15 votaram contra[10]. Tempo, distorção, esquecimento: assim se escrevem as coisas que lembramos. É de justiça que lembremos os que vieram antes de nós - estamos em dívida com o seu legado[11] para que hoje seja possível encontrarmo-nos nesta casa. Porém, questionar a memória (o que lembramos e como lembramos) é parte fundamental do seu próprio exercício: a memória cultural é bem mais limitada e bem menos fiável que a memória genética[12]. Esta complexidade – conceptual, biológica, histórica e sociológica - acaba por ser o grande desafio museológico da Casa da Memória de Guimarães. O seu entendimento como produto do tempo em que existe, como um “lugar que alberga e expõe testemunhos materiais e imateriais que uma comunidade, num determinado momento, entende como merecedores de lembrança”, capaz de propor uma visão “múltipla, diversa e não linear do passado, presente e futuro de Guimarães, aqui e no mundo, mas também como um espaço onde o processo de construção da memória - discursivo, selectivo e por isso mesmo lacunar - se dá conhecer como tal[13]” traduz todas estas preocupações. Aqui chegados, importará então formular a questão: que desafios se propõem para o futuro deste modo de ver a memória? (O que é diferente de perguntar como será o futuro da Casa da Memória). Quatro são as linhas desta proposta, todas elas interligadas de forma mais ou menos evidente: a) Insistir na incompletude No ensaio Memory, Distortion and History in the Museum (1997), Susan A. Crane chama a atenção para processos de distorção da memória, operados por ambiguidades expositivas ou interpretativas no museu, que o conduz, não raras vezes, para uma produção de sentido único e para a criação de versões definitivas[14] das diferentes narrativas apresentadas. Importa que uma casa da memória mantenha sempre à vista de todos a natureza incompleta e plural dos testemunhos que expõe – de novo a questão da memória e das memórias – e que jamais se apresente como portadora de versões definitivas do que quer que seja, insistindo na capacidade de inquietar, de levantar questões, de oferecer mais do que um modo de leitura. Insistindo em querer ouvir. Afinal, todos lembramos de maneira diferente e a memória é uma construção: “nós não lembramos, recriamos a memória como recriamos a história”, diz a narradora no filme Sans Soleil (Chris Marker, 1983). Haverá outra memória que não seja subjectiva? Nesta mesma linha de insistência, a Casa da Memória de Guimarães deverá continuar distante de uma vocação atlântica, assumindo a sua condição de espaço com opções definidas e sustentadas, incompleto por natureza, com falhas e esquecimentos, atento e receptivo à sua própria crítica: não nos é possível lembrar tudo. b) Resistir à uniformização identitária A Casa da Memória de Guimarães é um espaço que lida com as memórias de uma comunidade que partilha entre si, e numa tradição antiga, um território (aqui entendido em sentido amplo, para além do geográfico). Ainda que tal proposição potencie uma vasta liberdade de interpretação, de reconhecimento e de experiência, bem como o confortante sentido de pertença a um lugar ou a alguém, ela contém também a latência das visões absolutas, redutoras e autocráticas: a ideia de um nós e dos nossos feitos, inscritos numa ideia de um nosso espaço - com a consequente exclusão da alteridade, do outro – é facilmente alinhável com a construção de discursos que tendem a conferir unidade ao que não tem medida comum: uma população na sua heterogeneidade irredutível[15]. Importa, por isso, tratar a identidade como um conceito frágil (Ricoeur, 81): na sua relação com o tempo - a memória é a componente temporal da identidade e o mesmo não é o idêntico -, na sua relação com o outro, tantas vezes entendido, pela diferença, como uma ameaça à identidade, e na herança da violência como acto fundacional das comunidades[16]. E isto consegue-se mediante uma prática e um discurso rigorosos e cuidados nos termos e conceitos, em permanente abertura ao outro e ao contraditório, em constante rememoração da natureza incompleta da memória que lhe dá corpo. Será pelo entendimento do espaço como de inclusão e de tolerância, de debate e de crítica, de construção e integração a partir dessa mesma heterogeneidade irredutível que nos une, num aqui e num agora, que se resiste às máquinas identitárias[17] e à tentação de mobilizar a memória ao serviço da identidade[18]. c) Nunca esquecer a memória A existência do substantivo memória no nome da casa implica a necessidade de pensar, investigar e partilhar conhecimento em torno desta mesma memória: se na memória de Guimarães, tal desígnio se cumpre no eixo expositivo e nas acções de programação que o movimentam, há que trabalhar em torno da memória tout court, desligada deste confinamento territorial: quer isto dizer que a Casa da Memória deve manter como orientação programática a memória em si, nas suas múltiplas formas, e a compreensão da sua amplitude: do biológico ao binário, do esquecimento à destruição, da história ao arquivo, do individual ao colectivo, da ficção à pós-memória, entre tantas outras possibilidades de fundo e de forma. A existência de um Repositório da Casa da Memória - como espaço físico onde a memória se debate, como espaço digital onde a casa, os seus acervos e a sua própria memória se partilham com o mundo – assume-se como o lugar central (mas não exclusivo) desta proposta. d) Pela curiosidade, questionar Imaginemos um princípio da curiosidade que, pela montagem que propõe na Exposição e pela programação que oferece no Repositório, levanta perguntas, desconstrói o instituído, possibilita várias leituras em torno de uma ideia, aceita em si e debate no seu espaço a crítica às suas próprias acções. Como consequência deste princípio, o visitante é agitado, desafiado a reflectir e a debater - o museu (neste caso, a Casa) distancia-se assim de uma natureza discursiva unidirecional - e aproxima-se de um lugar de reflexão, onde nos encontramos pessoalmente[19], onde reconhecemos as memórias que temos do lugar que habitamos ou onde estamos de passagem. Este entendimento deve permitir, também, que a Casa da Memória se continue a projectar e programar de forma livre e desconstrangida, bem distante de um pensamento turistificador, que tudo unifica num discurso de melhoridades, de unicidades, de excelências e de experiências irrepetíveis. Se a esta preocupação juntarmos como linha orientadora a recusa da espectacularidade dos dispositivos tecnológicos – melhor dizendo, se renovarmos continuadamente a consciência do seu carácter subsidiário, bem como a sua rápida obsolescência –, a Casa da Memória de Guimarães reforçará a sua condição e vocação de lugar de imagens e de imaginários, de um lugar de vagar, de fruição e conhecimento descomplexados. E a memória continuará a ser uma casa onde estas imagens e imaginários se dispõem, prontos a ser apreendidos pelo visitante que passa pelos seus vastos corredores. Bibliografia referenciada no texto AGOSTINHO, Santo – de Hipona (ca 397-398) – “Confissões”. Trad. SANTOS, J. Oliveira e PEREIRA, A. Ambrósio. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990. BABO, Maria Augusta (2009) – “Escrita, Memória, Arquivo”. In Revista de Comunicação e Linguagens, nº 40 Lisboa : Relógio de Água, 2009. BELTING, Hans (2001) – “Place of Refection or Place of Sensation”. In The Discoursive Museum [S.l.]: Ed. NOEVER, Peter. Hatje Cantz Publishers, 2001. BRITO, Francisco (2011) - “O Botequim do Vago-mestre : política e sociedade na Guimarães oitocentista”. Guimarães : Associação Artística Vimaranense, 2011. CRANE, Susan A. (2012) – “Memory, Distortion and History in the Museum” (1997). In Museum Studies: an Anthology of Contexts. Ed. CARBONELL, Betina Messias, [S.l.] : Willey-Blackwell, 2012. ESTRABÃO (2008) – “Geografia” (ca 7 a.C.) – Livro XVII, Cap. 1, Secção 8. In Museum Origins – Readings in Early Museum History and Philosophy. Ed. GENOWAYS, Hugh H. e ANDREY, Mary Anne. Walnut Creek : Left Coast Press, 2008. FLUSSER, Vilém (1990) - On Memory (Electronic or Otherwise) in Leonardo, Vol. 23, No. 4 (1990), pp. 397-399. JAUCOURT, Chevalier de – Entrada Muses da Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Ed DIDEROT, Denis e D’ALEMBERT, Jean le Rond. Paris, 1751-72. Disponível em www. encyclopédie.eu/M.html LE GOFF, Jacques (1984) – “Memória”. In Enciclopédia Einaudi, Tomo 1. [S.l.] : Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. RICOEUR, Paul (2004) – Memory, History, Forgetting, University of Chicago Press, 2009. RODRIGUES LOPES, Silvina (2007) – “Resistir às Máquinas Identitárias” in Intervalo #3. Lisboa : Diatribe, 2007. VV.AA – (s/d) “Bíblia Sagrada”. São Paulo : Ed. Paulinas, 1980. WHITEHEAD, Anne (2008) – “Memory (New Critical Idiom)”, Routledge 2008. ** BERGER, John (1978) – “Uses of Photography” in Understanding a Photograph, Penguin, 2013, 58. Bibliografia consultada BRITO, Eduardo (2014) “Claro Obscuro: Em Torno das Representações do Museu no Cinema.” Dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos, Museológicos e Curadoriais, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. [1] VV.AA – (s/d) Ecclesiastes, 1:11, “Bíblia Sagrada”. São Paulo : Ed. Paulinas, 1980. [2] RICOEUR, Paul (2004) – Memory, History, Forgetting, University of Chicago Press, 2009, pág. 7 [3] WHITEHEAD, Anne (2008) – “Memory (New Critical Idiom)”, Routledge 2008, pág. 52 [4] BABO, Maria Augusta (2009) – “Escrita, Memória, Arquivo”. In Revista de Comunicação e Linguagens, nº 40 Lisboa : Relógio de Água, 2009, pág. 49. [5] AGOSTINHO, Santo – de Hipona (ca 397-398) – “Confissões”. Trad. SANTOS, J. Oliveira e PEREIRA, A. Ambrósio. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, pág. 247. [6] RICOEUR, Paul - cit. pág. 5 [7] JAUCOURT, Chevalier de – Entrada Muses da Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Ed DIDEROT, Denis e D’ALEMBERT, Jean le Rond. Paris, 1751-72. Disponível em www. encyclopédie.eu/M.html [8] ESTRABÃO (2008) – “Geografia” (ca 7 a.C.) – Livro XVII, Cap. 1, Secção 8. In Museum Origins – Readings in Early Museum History and Philosophy. Ed. GENOWAYS, Hugh H. e ANDREY, Mary Anne. Walnut Creek : Left Coast Press, 2008, pág. 15. [9] LE GOFF, Jacques (1984) – “Memória”. In Enciclopédia Einaudi, Tomo 1. [S.l.] : Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, pág. 18. [10] BRITO, Francisco (2011) - “O Botequim do Vago-mestre : política e sociedade na Guimarães oitocentista”. Guimarães : Associação Artística Vimaranense, 2011. Pág. 72 e ss. [11] RICOEUR, Paul - cit. pág. 89. [12] FLUSSER, Vilém (1990) - On Memory (Electronic or Otherwise) in Leonardo, Vol. 23, No. 4 (1990), pp. 397-399. [13] Missão e Valores da Casa da Memória de Guimarães, in www.casadamemoria.pt [14] CRANE, Susan A. (2012) – “Memory, Distortion and History in the Museum” (1997). In Museum Studies: an Anthology of Contexts. Ed. CARBONELL, Betina Messias, [S.l.] : Willey-Blackwell, 2012, págs. 304 e 314. [15] RODRIGUES LOPES, Silvina (2007) – “Resistir às Máquinas Identitárias” in Intervalo #3. Lisboa : Diatribe, 2007, pág. 59. [16] RICOEUR, Paul - cit. pág. 82 [17] RODRIGUES LOPES, Silvina - op. cit., pág. 54. [18] RICOEUR, Paul - cit. pág. 81 [19] BELTING, Hans (2001) – “Place of Refection or Place of Sensation”. In The Discoursive Museum [S.l.]: Ed. NOEVER, Peter. Hatje Cantz Publishers, 2001, pág. 79. |