CONRAD WILHELM MEYERSICK - O REALIZADOR EFÉMERO
[Chemnitz, Saxónia, 4.1.1873 - Barcelona, Espanha, 12.7.1936] um estudo de Eduardo Brito Introdução Poucos serão os cinéfilos que já ouviram falar em Conrad Wilhelm Meyersick. Pelo contrário, se passarmos os olhos por qualquer história da indústria têxtil em Portugal e em Espanha, este nome não será estranho aos olhos dos entendidos: Meyersick, engenheiro, foi responsável pela montagem de um sem número de teares num sem número de unidades fabris na Península Ibérica no início do século XX, da Corunha a Huelva, passando por Portugal. Meyersick, cineasta, realizou apenas dois filmes, Der Schlingel / O Facínora (1920) e El Impostor de Alcalá / O Impostor de Alcalá (1922), precisamente em Portugal e em Espanha. Mas quem foi este personagem obscuro que o cinema nunca lembrou? 1 - O Engenheiro Irrequieto Conrad Wilhelm Meyersick nasceu em Chemnitz, no coração da Saxónia, em 1873. Era o filho mais novo de Johann Heinrich Ludwig August Meyersick, director do Conservatório de Música da cidade, e de Minna Klara Hinkel, irmã do abastado industrial Friedrich Otto Hinkel. A vida de Conrad andou sempre ligada às gramáticas da invenção. Desde muito novo que manifestou uma particular apetência pelos engenhos: na infância e pré adolescência conhecem-se-lhe desenhos de máquinas para voar, de câmaras estenopeicas em tamanho gigante e de violinos de sete cordas, bem sintetizando nestas utopias o legado dos seus progenitores. Em 1896, depois de dois anos a estudar em Dresden, Conrad Wilhelm Meyersick rumou a Manchester para aprofundar os seus estudos em engenharia na Victoria University. Durante os anos universitários, Meyersick manifestou um enorme fascínio pelo cinema: nas cartas que escreveu ao seu irmão Kasper, longas foram as descrições das sessões a que assistiu no St. James Theatre em Oxford Street. Em 1905 chegou a deslocar-se a Paris para conhecer Louis Feuillade em 1910 viajou até Viena, por onde circulavam grandes nomes do cinema alemão de então. Meyersick permaneceu em Inglaterra durante dez anos. Depois dos estudos, trabalhou na Howard & Bullough, em Accrington. A morte prematura do seu irmão mais velho, num acidente de veleiro, fê-lo regressar à Alemanha, para trabalhar na fábrica do tio Friedrich Otto Hinkel, a Moritz Rockstroh & Hinkel GmbH. É por essa altura, nos idos de 1907, que conheceu Selma Graetz, com quem casaria dois anos mais tarde, dela se tornando inseparável para o resto da vida. Selma, professora de música e actriz de teatro, era uma mulher refinada, de ascendência aristocrática, com ligações à família Windsch-Graetz. Espíritos irrequietos, Conrad e Selma rumaram a Londres onde permaneceram apenas dois anos, tempo suficiente para Meyersick se tornar engenheiro da Edwin J. Brett & Co., ficando responsável pelo acompanhamento e montagem de maquinaria no mercado da Península Ibérica. Foi por isso que nos inícios de 1913 o casal se mudou para Barcelona - centro do têxtil espanhol – passando a residir na Carrer de St. Pau. De imediato, Conrad e Selma mergulharam na vida cultural da cidade, frequentando as sessões do El Gran Cine Kursaal, na Rambla de Cataluña, e do Teatro Tívoli na Calle Caspe. O trabalho de Meyersick não lhe permitia permanecer longas temporadas na capital espanhola catalã: como chefe da equipa de engenheiros da EJB&Co, para a Península Ibérica, viajava para toda a península para instalar e montar maquinaria numa indústria têxtil florescente. Porém, com o despontar da Primeira Guerra Mundial, os périplos de Conrad ficaram reduzidos ao mínimo. A permanência quase forçada em Barcelona fê-lo conviver de perto com a inteligentsia local, que, encantada pela sua cultura cinematográfica, frequentemente o convidava para comentar e palestrar sobre todo o tipo de filmes em botequins e salas de cinema. Meyersick era presença habitual nas tertúlias do Café Maison Dorée, então muito frequentado pelos cinéfilos locais, entre os quais o lendário Fructuós Gelabert. É por esta altura que trava conhecimento com Anatole Thiberville, cameraman francês que o iria acompanhar na rodagem de O Impostor de Alcalá, e com Rino Lupo, o cineasta italiano conhecido em Espanha por Cesarino e que, em Portugal, realizou o filme também perdido O Diabo em Lisboa. Conrad Wilhelm Meyersick veio pela primeira vez a Portugal em Julho de 1918. Logo após o final da Guerra, o têxtil português conhece um enorme impulso produtivo. As industrias cresceram e modernizaram-se. Meyersick, então já o maior especialista em jacquards na península, foi chamado a instalar três teares numa fábrica dos arredores do Porto. O sucesso e a eficiência das suas máquinas, aliado à rapidez das montagens e aos baixos custos de deslocação terão aberto o mercado português à Edwin J. Brett & Co. e, desta feita, ao engenheiro alemão, que passou a ser visita regular ao norte português de aí em diante. Numa destas vindas ao Entre-Douro-e-Minho, Conrad travou conhecimento com James Lickfold, engenheiro inglês radicado no norte que, anos antes, fundara a Fábrica a Vapor de Tecidos de Linho de Guimarães - a Fábrica da Avenida - que depois se fundiu com a Companhia de Fiação e Tecidos de Guimarães. Terá sido Lickfold o responsável pela escolha de Meyersick e da sua equipa para, entre Fevereiro e Julho de 1920, montar e instalar uma linha de jacquards na Fábrica da Avenida, em Guimarães. Pouco tempo passaria até que o engenheiro irrequieto que adorava cinema começasse as rodagens do seu primeiro filme, O Facínora. 2 - O Cineasta por Acaso Conrad Wilhelm Meyersick realizou apenas dois filmes. O Facínora, datado de 1920, foi parcialmente rodado em Guimarães, aquando da estadia do alemão nesta cidade. O Impostor de Alcalá, realizado em 1922, foi rodado na cidade homónima e em Barcelona. O Facínora transforma em conto um facto verídico: a 18 de Julho de 1839, a imprensa local noticia a morte, nas Caldas das Taipas, de Frei Domingos Pedreira: “este facínora depois de ter cometido os maiores crimes, foi morto por um ferreiro com um tiro de clavina”, lia-se no jornal local. A partir deste facto, o engenheiro-cineasta cria a lenda de um justiceiro vingador, dotado de uma força anormal, que, por não ser correspondido pelos amores de uma mulher comprometida, se torna num vilão aterrorizador de uma pacata cidade. O Impostor de Alcalá, por seu lado, transforma em folhetim de capa e espada a história verídica passada em Alcalá de Henares nos inícios do século XVII, em que um actor sem braço esquerdo se fez passar por Miguel de Cervantes. As médias metragens O Facínora e o Impostor de Alcalá nunca foram profundamente estudadas e não se encontrou ainda documentação que comprove ou sustente as poucas teorias avançadas. Os genéricos de ambos os filmes comprovam o óbvio: a autoria do argumento e realização é sempre de Meyersick e decorre de uma adaptação de uma história local; Paul Öberstein, assistente técnico nos trabalhos do engenheiro, aparece como actor principal nos dois filmes; os elementos da equipa técnica do filme são também colegas de trabalho do engenheiro-realizador. As restantes personagens, quando não identificadas pelo nome, aparecem referidas como "um grupo de actores locais". 3 - O Alemão na Cidade Regressemos a Guimarães: estamos em Fevereiro de 1920 e Conrad Wilhelm Meyersick chega à cidade, depois de uma extenuante viagem de três dias desde Madrid. À sua espera, na estação de comboios, está Augusto José Domingues d'Araújo, accionista e director da Fábrica da Avenida, que o instala no Hotel Toural, a pouco menos de quinhentos metros da fábrica onde, diariamente e durante quase cinco meses, Meyersick irá instalar uma linha de jacquards. É muito provável que o engenheiro alemão, pouco após a sua chegada à cidade, tenha conhecido o empresário e promotor de cinema nortenho Luiz do Souto, presença habitual no Hotel que ambos partilharam: se relacionarmos as suas Memórias de um Empresário (1938) com o empreendimento que, em Junho de 1920, o levou a adaptar a Praça de Touros da Quintã em cinema ao ar livre, verificamos a referência a um "amigo alemão" que, "indefectível das projecções ao ar livre nos jardins do Cine Glória, em Barcelona, e do Paseo de Prado, em Madrid", teria sido "o principal impulsionador da mesma ideia em Salamanca, na Plaza Mayor", dois anos antes. Quem, senão Meyersick, poderia ser este amigo? A cinefilia de Meyersick não passa despercebida em Guimarães. As crónicas da cidade referem-se-lhe como o "robusto alemão" que não falha uma sessão de cinema no Central Chantecler, à Rua de Gil Vicente e no High Life, no Campo da Feira. Porém, a partir destes dados, nada mais há que suposições: Meyersick poderá ter tomado conhecimento da lenda do Facínora Frei Domingos pelo contacto com os apontamentos de etnografia de Martins Sarmento, disponibilizados provavelmente por responsáveis da Sociedade epónima. Bon-vivant, fluente em castelhano, dinamizador do seu meio, Conrad Meyersick terá facilmente chegado ao conhecimento do Grupo Scénico do Orfeão de Guimarães, então o mais popular grémio de teatro da cidade. Assim se poderá explicar a participação de dois elementos seus no elenco do filme (Henriqueta Dionísio e Santo Rodrigues). A análise do guião do filme e dos fragmentos de película que chegaram até aos nossos dias permite concluir que O Facínora terá sido rodado em Maio de 1920 entre Guimarães e a Ponte da Misarela, na Serra do Gerês. Tudo o mais que se possa adiantar será um exercício especulativo: é provável que os interiores tenham sido rodados no Palácio de Vila Pouca, mas também o podem ter sido noutra casa senhorial da cidade. Juntando factos e especulações, assim se estabelece uma possível teoria de possibilidades sobre O Facínora: uma obra que mostra uma profunda assimilação da linguagem estética e técnica do cinema de então; um guião que traduz o fascínio do realizador pelo folclore fantástico e bizarro, sempre depurado com um finíssimo recorte de humor; um filme rodado em Guimarães por uma simples contingência do destino profissional do seu realizador. O que é certo é que a 22 de Julho de 1920, Conrad Wilhelm Meyersick despediu-se do Hotel Toural, de Augusto José Domingues d'Araújo e da Fábrica da Avenida e nunca mais regressou à cidade, levando consigo as bobines de película de O Facínora. Instalado em Barcelona, apenas por uma vez mais voltaria a Portugal: em 1927 esteve em Lisboa, a convite do amigo e realizador Rino Lupo. Em 1922 Meyersick filma a sua segunda e última média metragem: O Impostor de Alcalá. Os exteriores são rodados na referida localidade, Alcalá de Henares, e os interiores fizeram-se na Pasage Mercaders, a sede da sociedade produtora Regia Art, em Barcelona. A atenção que o filme mereceu da crítica, por alturas da sua estreia, foi francamente escassa: o Impostor de Alcalá era uma média metragem dirigida por um realizador ocasional, que não fazia parte do grupo dos profissionais. Meyersick era apenas um aficcionado que não tinha tido tempo ou oportunidade de penetrar nos círculos de cineastas da época. Por isso mesmo e a contas com sucessivas viagens à Cantábria e à Alemanha, o engenheiro alemão terá deixado de filmar de vez por essa altura. Em Julho de 1936, nas vésperas do início da Guerra Civil Espanhola, Conrad Wilhelm Meyersick falece tranquilamente em Barcelona, sobrevivido pela sua inseparável Selma Graetz. 4 - O Filme volta a ser Cinema Nos finais de 2011, sete escassos fragmentos deste filme chegaram às mãos da Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, através de um coleccionador espanhol anónimo, que revelou tê-los comprado num lote, no referido ano, a um alemão. Com os fragmentos encontrava-se uma cópia do guião e uma nota escrita à mão, que nomeia um professor de cinema de Berlim, já falecido. Daqui em diante, a história de O Facínora entra no caminho conhecido: por um acaso tão grande como aquele que levou Conrad Wilhelm Meyersick a filmá-lo em Guimarães, O Facínora regressa ao seu local de origem. Os fragmentos de película e o guião foram objecto de um minucioso e depurado estudo, cujo resultado acaba por ser a refilmagem, em 2012, de O Facínora por Paulo Abreu, com uma banda sonora criada pelos músicos The Legendary Tiger Man e Rita Redshoes. Sempre que possível, o filme de Paulo Abreu recorre aos mesmos cenários da versão original de O Facínora: para a história geral dos pequenos pormenores, pode dizer-se que, na versão de 2012, a cena do roubo do museu e do encontro com o diabo são filmadas exactamente nos mesmos locais que as suas congénere de 1920: no Museu da Sociedade Martins Sarmento e na Ponte do Diabo, na Misarela. O mesmo se diga relativamente aos intertítulos em alemão, constantes dos fragmentos ou indicados no guião: foram traduzidos para português e refeitos com as fontes tipográficas e tratamento gráfico originalmente utilizado. Assim regressam do esquecimento a memória de Conrad Wilhelm Meyersick, realizador efémero e obscuro, bem como a reinvenção do seu filme perdido, O Facínora. Bem-vindos de volta. Ficha Técnica de O Facínora, tal como constante nos fragmentos e no guião de Conrad Wilhelm Meyersick (1920) O Facínora Uma História Portuguesa em Três Actos Argumento e Realização: Conrad Wilhelm Meyersick, 1920. Cenário: Richard Schwarze Fotografia: Jorg Bauernhöf Engenheiro: Rüdiger Brüchen Câmara: Joszef Haube Com: Paul Öberstein, Henriqueta Dionísio, Santo Rodrigues, Richard von Dreieinigkeit, Estanislau dos Santos, Victor Blütner, Elizabete Galvão e um grupo de actores locais. Ficha Técnica de O Facínora, tal como refilmado por Paulo Abreu (2012) Paulo Calatré - Facínora Tânia Dinis - Letícia Rodrigo Santos - Noivo Valdemar Santos - Diabo Ricardo Vaz Trindade - Amigo do Noivo Armando Morais - Ladrão Isabel Gaivão - Bruxa Sílvia Miranda - Mãe de Letícia Armando Miranda - Pai de Letícia Nuno Preto - Polícia Pedro Marinho - Jagunço 1 Mário Gomes - Jagunço 2 Eduardo Brito - Jagunço 3 Realização: Paulo Abreu Argumento: Eduardo Brito Fotografia: Jorge Quintela Música: Rita Redshoes The Legendary Tigerman Câmara: José Capucha aka Torrão Produção: Rodrigo Areias Produção Executiva: Ricardo Freitas Direcção de Arte: Ricardo Preto Efeitos Especiais: Júlio Alves Figurinos: Susana Abreu Sofia Torrinha Maquilhagem: Bárbara Brandão Equipamento: Pedro Bastos António Pedro Marinho Secretariado: Luísa Alvão Este trabalho não poderia ter sido feito sem a reconhecida ajuda de Marcel Graetz, sobrinho bisneto de Meyersick, seu único descendente e detentor das imagens do realizador e da sua mulher, aqui utilizadas. O autor deste estudo agradece também a valiosa colaboração de José Manuel Lopes Cordeiro, Paulo Cunha e Víctor Erice, bem como da Colecção de Fotografia da Muralha, proveniente da Foto Eléctrica-Moderna. |