VIAGEM, PAISAGEM, QUE IMAGENS? Notas pessoais de uma deriva europeia in Paisagem: matéria <=> ficção, coord. Andreia Magalhães e Samuel Guimarães Ed. Museu do Douro, Maio de 2015. ISBN: 978-989-8385-15-4 [editado] Distância e percurso. Quase nove mil quilómetros distam entre a Ponta de Sagres e o Cabo Norte: os extremos de uma viagem de carro, em vários capítulos, que já começou a ser feita. O percurso segue quase sempre por estradas secundárias, contorna a costa ocidental da Europa, atravessa o Canal da Mancha, faz um arco pela Inglaterra, Irlanda e Escócia e reentra no continente na Noruega. Uma deriva pela periferia da Europa, portanto. Uma viagem à procura de imagens, feita dessas mesmas imagens e do seu alinhamento. Este é um projecto de longo curso. Começou em 2009, continuou em 2012 e 2013 e deu origem a duas publicações: Terras Últimas, em 2010, e Sob a Luz Quase Igual em 2014. É um projecto que procura mostrar e reflectir sobre a ideia do fim de terra. Finisterra. [Da série Terras Últimas, 2010.]
Finisterras. Viajemos no tempo. Pouco depois de entrar na Universidade, fui até Finisterra de carro com uns amigos, levados pelo nome daquele lugar. E lá fomos, até ao fim da terra, paisagem terminal, ao sítio onde os Romanos diziam que o mundo acabava por causa da luminescência aterradora do pôr-do-sol. No final dos noventa, Finisterra era um lugar de acessos difíceis, duro, habitado por gente do mar. Quase sem turistas, o que fazia com que fossemos olhados com alguma desconfiança - princípio básico para se compreender que se está no sítio certo. O desastre e o dinheiro do Prestige, em 2002, ainda não tinham transformado aquele fim de terra num destino turístico. Na lota bebia-se bagaço em tabernas e não existiam esplanadas com comidas do mundo e sabores locais. Poucos eram os peregrinos para quem o Caminho de Santiago terminava ali e não no Obradoiro. Finisterra era o fim do mundo. E nós, sempre de trocos contados, queríamos sentir alguma dureza bem para lá de qualquer destino turístico padronizado para teenagers em fim de ciclo lectivo. Fiquei fascinado com aquele nome e com aquele lugar. Tempos mais tarde, descobri que a Bretanha francesa tinha também a sua Finistère, o ponto geográfico de remate da sua Cournouaille. E que a Cornualha inglesa acabava num lugar chamado Land’s End. A geografia confusa e repetitiva destes lugares apresentava uma Europa bem mais próxima que as suas fronteiras naturais e políticas pareciam propor. Le Conquet, Finistère, França. Da série Terras Últimas, 2010.]
Terras Últimas. As sete ou oito viagens que fiz a Finisterra daí em diante, o fascínio pela repetição onomástica, a vontade de conhecer fins de terra, lugares terminais onde o homem permanece, mas também o imaginário Holmesiano e Hitchcockiano da Cornualha e dos irredutíveis Gauleses da Bretanha de Astérix, levavam-me a querer fazer aquela viagem. Faltava-me um plano que fosse além do turismo, faltava-me dinheiro e a carta de condução. Um dia, pouco tempo depois de a ter, falei desta ideia a um amigo escocês, o músico Sandy Kilpatrick: pegar no carro e ir andando entre Finisterras. Levar a máquina e fazer um álbum. Como os músicos também fazem álbuns, achámos por bem juntar esforços, procurar financiamento e fazer as Terras Últimas: um álbum de fotografias e de música, unidos pela mesma viagem, unidos na mesma edição. O plano base seria seguir sempre por estradas secundárias o mais rente à costa possível, exercendo uma condução de cabotagem, pelo lado periférico das estradas rápidas, pelos sítios para lá do turismo, com paragens determinadas pelo fim de terra e pelo cansaço. Com a devida lentidão, porque hoje em dia tudo anda depressa demais: por isso o carro, por isso as máquinas com rolos de 35mm. Uma road trip europeia para ver e confirmar o lado bê da Europa ocidental. Eu conduzia e o Sandy escrevia. Caso não fosse a conduzir, quereria estar sempre a parar para fotografar. Chegámos a uma Finisterra diferente, mas ainda assim um lugar longe, onde custa chegar. Como todos os fins da terra. E daí partimos para Finistère, primeiro Saint-Matthieu du Fine-Terre, depois Land's End, depois Finisterre outra vez - agora Plogoff. Regressámos a Portugal pelos Picos de Europa. Outro ponto final da paisagem. Estávamos por tudo, tínhamos tempo, marcámos apenas dois hotéis como portos seguros. Demorámos dezasseis dias a ir e a vir. Conhecemos uma senhora que se nos apresentou como Alice e dois segundos depois corrigiu, dizendo chamar-se Penélope. Viajámos horas sem falar. Debatemos a essência da versão, Hallellujah de Leonard Cohen por Jeff Buckley e a reinvenção de People Are Strange dos Doors por Stina Nordenstam. Em 2010 saiu o livro e o disco, editados pelo Centro Cultural Vila Flor em Guimarães. A exposição foi no seu Palácio. [Da série Sem Sinal de Perigo, s/d.]
Theft, and wandering around lost. Porque viajamos? Relembro-me da frase de Gilles Deleuze em carta a Serge Daney sobre Optimismo, Pessimismo e Viagens. Traduzo: “que razão há então, senão ir ver por si próprio, confirmar algo, um sentimento inexprimível vindo de um sonho ou de um pesadelo, nem que seja apenas ir ver se os chineses são amarelos como as pessoas dizem, ou se uma cor improvável, um raio verde, um ar azul, púrpura, realmente existe no meio de algum lado”. Eu viajo pelo cinema, vou pelos filmes, pelo imaginário, enquanto modo infixo das visualidades se inscreverem na nossa memória. A palavra e a história complementam a imagem, ampliam-na, reduzem-na, alinham-na. Viajo então pelo prazer do travelling frontal que acontece no vidro-ecrã do carro, pressinto o movimento cinemático na minha visão periférica, onde a paisagem se dilui num movimento aparente. - o efeito dromoscópico, como lhe chamou Paul Virilio. E pelo cinema (ou pelas imagens do cinema) viajo também aos locais onde a sua história se fez. [Da série 5 p.m., Hotel de la Gloria, s/d, com Rui Hermenegildo.]
Por isso viajei até Osuna, com o meu amigo Rui Hermenegildo, motivados pelo penúltimo plano do filme de Michelangelo Antonioni, Professione: Reporter. Ali fomos à procura do seu Hotel de la Gloria, que sabíamos ter sido filmado em Vera, na costa Leste de Espanha. Entre o imaginário e real, sempre o imaginário. Por isso viajei também a Hoyuelos, onde Victor Erice filmou El Espíritu de la Colmena. E uma vez em Tallinn, tentei entrar na Zona de Tarkovsky em Stalker. Outra vez em Londres, dirigi-me a Marion Park, para ver por mim próprio o que David Hemmings terá visto pela máquina fotográfica em Blow Up, de novo de Antonioni. Em Brooklyn, parei na esquina da 16th Street com West Prospect Parke em Brooklyn para tirar uma fotografia como a de Auggie Wrenn em Smoke, de Wayne Wang e Paul Auster. Lembrei-me que quando Auggie mostra a sua colecção de imagens a Paul Benjamin, este percorre-a em ritmo apressado, quase automático e Auggie diz-lhe: you'll never get it if you don't slow down, my friend. [Brooklyn, NYC, a partir de Smoke (Wayne Wang e Paul Auster), s/d.]
Viajo então contra a rapidez. Viajo pelos regressos. Viajo pela ficção, pela imaginação de filmes ao longo da paisagem – os que vi e os que nunca filmarei, comprimindo-os numa imagem fotográfica pelo cinema que aí pode existir, pela história movente que cada imagem contém, pela sua natureza de storyboard involuntário. Theo Angelopolous e Tonino Guerra em To Vlemma Tou Odyssea – precisamente O Olhar de Ulisses – escrevem um diálogo onde se diz: “No princípio Deus criou a viagem, depois a dúvida e por fim a nostalgia”. A mesma nostalgia que nos leva à representação, às imagens (ao cinema, à fotografia, à pintura). Pela viagem compreendo o que é casa, o que é abrigo, o que é caminho, quem me faz falta. Por isso terei sempre que viajar. [Vila do Bispo, Sagres. Da série Sob a Luz Quase Igual, 2014.]
Sob a Luz Quase Igual. O tempo da viagem de 2009 fez-me perceber que queria que a minha vida toda passasse a ir pelos filmes, pelas imagens e pelas viagens. Só a viajar de carro me sinto livre, como Moretti no mar em Caro Diario. Sou feliz neste meu engano, a estrada é um discurso, é uma ordenação. Como no cinema. A viagem de 2009 fez-me compreender também que aquele podia ser o projecto de uma vida ou de parte dela: teria que descer a Sul - ao fim de terra ilusório de Sagres - e chegar a Norte - ao fim de tudo, ao Cabo Norte. Com ou sem banda sonora; para um livro ou para um filme. Aceitarei a viagem como ela vier. No Verão de 2012, viajei de Sagres a Finisterra numa semana. Auto-estrada apenas em três pontos: a atravessar o Tejo, na VCI e à passagem por Santiago pela pressa. Foi uma viagem feita debaixo de um tremendo calor. Apenas fotografava de manhãzinha e ao final do dia. Sempre com rolo a p&b, desta feita em médio formato. Parei no talvez único verdadeiro fim de terra português: São Jacinto. Um istmo de onde não se pode ir para nenhum lado, apenas voltar. Estas imagens foram editadas num Fascículo da Pierrot Le Fou, com o título "Sob a luz quase igual", uma frase roubada a Carlos de Oliveira, que a escreveu no livro Finisterra. No ano seguinte, viajei com a Joana Gama por entre as terras do interior de Portugal: Paul, na Beira-Baixa; Reguengos de Monsaraz, no Alentejo; Miranda do Douro e Paradela, em Trás-os-Montes. Dessa viagem, motivada pela peça para piano terras por de trás dos montes, de Carlos Marecos, nasceram as terras interiores: um trabalho de vídeo e fotografia sobre música, interpretada pela Joana. [Kirkwall, Orkney, Escócia, s/d.]
Pequena Teoria dos Fins de Terra. A experiência de São Jacinto daria origem a um desenvolvimento ficcionado no ano seguinte, numa viagem feita pelo norte da Escócia - o terceiro de cinco pontos desta odisseia meia feita. De Ullapool a Aberdeen (ou vice versa), de carro, com passagem por John O'Groats e pelas ilhas Orkney. É nestas alturas que compreendo o que ando a fazer - afinal, a tentar teorizar sobre esta ideia dos lugares de fim. A encontrar ligações para além do caminho, da via. Num texto chamado As Orcadianas invento o poeta obscuro David Scott - o nome de um antigo marinheiro com quem de facto estivemos à conversa numa manhã de segunda feira - e ponho-o a discorrer sobre isto. “[David] Scott foi dos primeiros autores a teorizar sobre a essência dos fins-de-terra. Discorreu sobre o assunto em dois pequenos textos de prosa poética, referindo-se em ambos a uma impossibilidade de prosseguimento característica destes lugares. Pelo seu carácter antrópico – um fim-de-terra só o é porque lá existe permanência ou vestígio humano - este sentimento (termo que prefere em vez de ideia) é motivado pela presença de, elenca, rotundas sem saída ou outros fins da estrada, aldeias ou vilas de proximidade aparente ou de difícil acesso, terminais de ferry ou pequenos portos e, por fim, construções em istmos que dividem a ria do mar-de-fora. Até o regresso dista, até a volta é longe [even return is distant, even return is far], escreveu”. [Aberdeen, Escócia, s/d.]
E depois, chegar. Estas viagens servem assim para ir ver por nós próprios. Para ir ver se o poeta David Scott tinha razão. Falta, portanto, o oeste da Irlanda - as Terras Célticas? - e o percurso norueguês - as Terras Árcticas? - que terá que iniciar-se com uma partida de ferry de Aberdeen, onde terminou a viagem caledónica. E depois? Depois será tempo de chegar. E aí haverá que lembrar o que Werner Herzog escreveu em 1974, depois de chegar a Paris, vindo de Munique a pé – afinal, essa viagem fora a única forma que ele encontrara para impedir que a crítica Lotte Eisner morresse de uma doença que a afectava: "nós os dois juntos vamos cozinhar um fogo e atear um peixe. Ela fitou-me e sorriu-me muito elegantemente. E porque sabia que eu era um caminhante, e por isso mesmo um homem indefeso, compreendeu-me. Por um breve e esplêndido momento, qualquer coisa de muito suave percorreu o meu corpo morto de cansaço. E eu disse então: abra a janela, de há uns dias para cá aprendi a voar." Será nessa altura que compreenderei que viajo indefeso, para fingir que sou livre, que sou um filme, que quando avisto o fim da recta a história acaba bem, somos felizes, os créditos rolam e aparece o The End. Referências Bibliográficas Gilles Deleuze, Optimisme, pessimisme et voyage. Lettre à Serge Daney, in www.diagonalthoughts.com/?p=1525 a partir de Gilles Deleuze: Negotiations 1972-1990 (New York: Columbia University Press, 1995). Werner Herzog, Caminhar No Gelo, Tinta da China, 2011. Citação: pág. 113. Paul Virilio, Negative Horizon – An Essay in Dromoscopy (1984) Continuum, 2008. Eduardo Brito, As Orcadianas, Grisu, 2014. Eduardo Brito, Sob A Luz Quase Igual, Pierrot Le Fou, 2014. Eduardo Brito e Sandy Kilpatrick, Terras Últimas, CCVF, 2010. Referências Filmográficas Andrei Tarkovsky, Stalker (1979). Michelangelo Antonioni, Blow Up (1966). Michelangelo Antonioni, Professione: Reporter (1975). Nanni Moretti, Caro Diario (1993). Theo Angelopolous To Vlemma Tou Odyssea (1994). Victor Erice, El Espírituo de la Colmena, (1973). Wayne Wang, Paul Auster, Smoke, (1995). O capítulo chamado Theft, and wandering around lost deve o seu nome a uma canção dos Cocteau Twins. |
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