Acção parada e uma dose de leitão — meia tarde com Pedro Santo e João Moreira
João Moreira e Pedro Santo, humoristas, realizadores de O Filme do Bruno Aleixo, chegam com quase uma hora de atraso ao almoço combinado no Homero dos Leitões, mítico restaurante bairradino nas cercanias da N1. Justificam-se com umas obras na estrada e um problema no gps, que os estava a enviar para a Grécia. Tudo parecia começar da pior forma: já não bastava o atraso quando Pedro Santo decide prescindir do leitão em prol de uma dose de frango assado, opção que adensou o mal estar já instalado. Usando o solilóquio como ferramenta de acalmia, João Moreira tergiversou longamente sobre o ponto óptimo de assadura do leitão, seguido de uma teoria sobre a laminação ideal da batata frita que o acompanha — o segredo está no ângulo do primeiro corte —, bem como da necessidade imperativa da rodela de laranja. A deriva de Moreira demorou bastante tempo e foi já nos finais do almoço que abordámos a questão que nos trouxera ali: de que falamos quando falamos de O Filme do Bruno Aleixo? O tema foi suficiente para libertar Pedro Santo do tédio que por regra costuma sentir nestas ocasiões: ‘é um filme de acção parado’, começou por dizer, peremptório, ingerindo de imediato uma garfada de arroz que o impediu de justificar a asserção. João Moreira acrescentou: ‘passa-me o espumante’. Em certa medida, ambos tinham razão — não fossem eles os realizadores do filme e não soubessem o que andam a fazer. O Filme do Bruno Aleixo é, de facto, um elogio a algumas das ferramentas do cinema. Elencam-se três: a referida acção parada, o valor expressivo do silêncio e a importância do fora de campo. Com uma agravante: o uso destes recursos pela dupla tem imensa piada, serve o humor que se propõe. Que dizer da cena — alerta de revelação! — do envenenamento de um mau chamado Mau? Que dizer da secura com que decorre, do ritmo em que se desenvolve, e da natural vénia a centenas de filmes de série B que relembra? Ou da extensão temporal do fora de campo de Ribeiro na República — uma cena exaustiva, como há muito o cinema português precisava — ou do silêncio de Renato Alexandre quando perguntado pelo Homem do Bussaco se o carro mal estacionado é de sua pertença? O Filme do Bruno Aleixo é, também por isso, um filme resistente: resiste à voragem da câmara irrequieta, resiste ao gag ditado pelo ritmo acelerado, propondo um humor que acontece num campo praticamente imóvel. Coisa rara nos dias que correm. Moreira fala do tempo no cinema de Manoel de Oliveira e de John McTernian, Santo refere a montagem nos filmes de Eugène Green e de Joe d’Amato, abrindo a porta a uma conversa que mais para a frente desembocará na defesa da pornografia como única arte verdadeiramente livre. Mas, como dizia René em Irma La Douce, that’s another story. O Filme do Bruno Aleixo é também uma resposta a uma questão imediata: como passar de uma série de animação televisiva para um exercício de cinema? Santo e Moreira sabem o que fazem: pagam a conta da refeição, pedem factura em nome do Som e da Fúria — Moreira não esconde algum mal estar: ‘o Urbano disse que este era o melhor leitão de sempre mas está redondamente enganado’ — escrevem as suas críticas nas redes sociais próprias e convidam-me para um passeio no Parque das Termas da Curia, décor de uma das mais emblemáticas sequências do filme, Crime nas Termas. O Filme do Bruno Aleixo, como conjunto de histórias soltas sobre várias possibilidades de um filme sobre a figura e façanhas de Bruno Aleixo é, portanto, aquilo que se pode chamar uma mise-en-abîme. Pedro Santo concorda, depois de ir à internet ver o que isso quer dizer. ‘A começar pelo título: escolhemos este porque assim as pessoas podem de imediato começar a encravar logo ali: quer ver O Filme do Bruno Aleixo? Que filme do Bruno Aleixo? O Filme do Bruno Aleixo.’ Depois, Moreira prossegue: ‘este filme é uma espécie de fix-up novel feita para a tela: um conjunto de histórias distintas — nas quais a representação de Aleixo, Ribeiro, Bussaco, Renato e Busto salta entre animações e figuras humanas, todos com mais de um rosto — unidas por uma linha narrativa que lhes dá um sentido coerente desta forma. Só assim, com as histórias, as versões das histórias, os actores, as vozes, as camadas de representação, isto deixa de ser uma versão grande de um episódio da série’. Eu concordo, depois de ir à net ver o que era uma fix-up novel. ‘É um pouco como se fosse possível conjugar o Aurora com o Starship Troopers ou o Júlio Iglésias com os Current 93’, acrescenta Pedro Santo, melancólico e confuso: ‘não sei bem, já não tenho distância para perceber’. O fim de tarde estava a chegar, e com ele a hora de ir aos Pranxudos lanchar uma sandes de leitão, cumprindo parte de um velho ritual aleixista de almoçar, lanchar e jantar leitão no mesmo dia. Pedro Santo ficou no carro a fazer apostas no telemóvel ou a cuscar perfis nas redes sociais, mas passado algum tempo juntou-se a nós e também malhou uma sandes. |