Elementos Fabulosos da Cidade da Horta Vamos chamar-lhe Huerter. Joss van Huerter. Nasce na Flandres, actual Bélgica, em mil quatrocentos e trinta. Em mil quatrocentos e sessenta e cinco veleja com quinze companheiros para a ilha de S. Luís dos Açores, antes das faias-das-ilhas a tornarem Faial. Huerter aporta à procura de prata e estanho. Relatos de cartógrafos, contadores de histórias e marinheiros dão a ilha como rica em metais preciosos. Fica um ano. Depois, parte, regressa e não volta a partir. Vamos dizer que organiza o povoamento da ilha. Que desenha as ruas da cidade atlântica, estipulando-lhe a vista para o Pico; que a defende de ataques de corsários. De Huerter a cidade toma o nome adocicado: Horta. Que terra senão a ilha é o lugar do navegante? A vinte e quatro de Julho de mil novecentos e setenta e quatro, o marinheiro belga Jacques Brel parte a velejar à volta do globo. A bordo do Askoy, faz escala nas ilhas Scilly, a sudoeste da Cornualha inglesa, antes de aportar na Horta a um de Setembro. Na marina, Brel adoece e a história conhece-se bem: o médico Decq Mota, português dos Açores de ascendência belga, é chamado a assisti-lo. Não o reconhece de imediato mas sabendo-o compatriota convida-o a almoçar em sua casa. Brel acede ao convite. Sente-se bem ali. Durante duas semanas permanece na ilha. Depois, parte outra vez para o mundo, numa odisseia que acabará no Pacífico, em Hiva Oa, ao lado de Gaugin que lá chegara setenta e um anos antes. A errância é a maior das liberdades. Hoje sabemos que a passagem de Brel pela Horta trazia já uma ideia de despedida. Talvez aí more todo seu fascínio. Diz-se que é por causa desta melancolia que os primeiros acordes de La Chanson Des Vieux Amants fazem mais sentido quando, ao passar nas águas tranquilas da enseada entre o monte e a lomba, se parte da Horta para qualquer lugar. Biensûr nous eûmes des orages. A dez de Julho de mil novecentos e sessenta e sete, o italiano Hugo Pratt desenhou pela primeira vez o marinheiro Corto Maltese. Criou-lhe uma história: Corto nasceu em Malta a dez de Julho de mil oitocentos e oitenta e sete, filho de uma cigana andaluza e de um marinheiro da Cornualha, sabedor de lendas célticas e apreciador de whisky irlandês. Pratt é um profundo admirador de uma ideia de desordem natural das coisas. Interessa-lhe, diz, “encontrar todos estes elementos fabulosos que parecem saídos da imaginação”: um marinheiro belga veleja para uma cidade fundada por um belga e é assistido por um médico de origem belga. A lenda diz-nos que a ilha açoriana para onde o marinheiro belga viaja fazia parte da Atlântida. As ilhas Scilly, onde o marinheiro belga aportara antes, faziam parte do arquipélago imaginário de Lyonesse. E Pratt, agregador destes elementos, perdeu-se um dia de amores por Anne Frognier, uma mulher de ascendência belga. Diz-se até que lhe terá escrito um postal da Horta onde mencionava o encanto do barulhar desordenado dos barcos na marina. in jornal fazendo, out 2010 |