Esta é a história
in 25_anos_25_Histórias Curtas_Vila_do_Conde, 2017 Omnisciência: Sábado, 19 de Junho de 1993 A lembrança de então tem agora os contornos de uma nuvem a evaporar. Daí que escrever Verão bicicleta possa fazer sentido para definir aqueles dias. Ou praia tédio nortada cinema. Azul noite caligrafia. Nada regressa muito nítido, ainda que o sentido das coisas permaneça intacto. A metáfora justifica-se: tenho uma imagem desse tempo. E a imagem, ainda que marcante, aparece como imprecisão, como a nuvem que evapora. Houvesse aqui rigor e essa mesma imagem seria fotográfica ou radiográfica. Mas não, é apenas uma imagem. Aos quinze anos, usava um aparelho fixo nos dentes e, pela primeira vez na vida, amava uma rapariga da minha idade. Aconteciam-me coisas novas, andava alerta. Dava por mim a conhecer. Nada iria acabar nunca, ainda não tinha perdido. Era por aí que sentia um espanto semelhante ao do cinema: fascínio vindo da infância, que agora era também argumento para sair de casa sem grandes questões. A rapariga passava os fins de semana de Verão em Vila do Conde. Eu ficava na Póvoa de Varzim. De bicicleta, íamos ao encontro um do outro: entre a praia e os filmes eram os dias. Recordo uma dessas vezes na Vila: a névoa vem do mar, cobre o tempo do fim da tarde e deixa olhar o sol sem ferir a vista, bola de luz amarela ténue. Apressados pela chegada do frio, saímos da praia com o ligeiro ardor do sal na pele húmida. Temos tempo antes da hora de regressar a casa, uma última volta juntos ainda dá. Atravessámos a Praça da República e ao percebermos alguma agitação à entrada do Auditório, parámos as bicicletas e ficámos a olhar. Ela chama-me a atenção para um cartaz: 1º Festival Internacional de Curtas-Metragens. Eu digo-lhe: temos que ir ao cinema. Um Verão glorioso: 4 de Julho de 1996 A minha época de exames na universidade (uma altura em que o calor era sinónimo de tontura e constante mal-estar) coincidia sempre com as datas do Curtas. Daí que só depois de terminar os estudos comecei a ser espectador frequente do festival. Lembro-me de uma excepção, logo no primeiro ano de faculdade: 1996, algo corre mal nesse período e vejo-me forçado a entrar em férias, tomado por uma tristeza mercurial cujo efeito esmagador era ampliado pelo calor (e também por dois problemas pessoais de complexa resolução). Compreendo que tenho que sair dali, mas não consigo voltar para casa dos meus pais. Com o pretexto de ir ver curtas metragens, de ir ao Curtas, rumo a Vila do Conde, ainda que ansiasse pelos amigos, pela nortada, pelo arrefecimento das noites e pelo nada fazer durante dias consecutivos. Na qualidade de narrador omnisciente e imprecisionista desta história (e convocando de novo uma memória definida pelos contornos da nuvem a evaporar) é possível dizer que estava longe de imaginar que uma passagem pelo Auditório, como antecâmara de uma saída de copos aos bares contíguos, acabasse por se tornar numa epifania cinematográfica. É que foi nesse fim de tarde de quinta feira que lá se projectou um filme que, anos mais tarde, se tornaria numa das obras que mais gosto, revejo e admiro: La Jetée (Chris Marker, 1962). A projecção foi a última de um conjunto de sessões dedicadas ao realizador francês que, convidado a estar presente, declinou por fax o referido convite, manifestando, ainda assim, alguma disponibilidade para ir ao Festival caso não lhe fosse dedicado nenhum ciclo. Nas despedidas, escreveu “I wish you a glorious summer”. E depois da assinatura, desenhou um pôr-do-sol. Pouco tempo depois de sair do cinema, a euforia dos amigos transportou-me para um universo espirituoso que me desfocou a lembrança. Se da noite anterior nada mais recordo que a história de um homem marcado por uma imagem de infância e das memórias residuais desta, da manhã seguinte não esqueço uma cena que me agita e cujo significado compreenderia apenas anos mais tarde: eu e os meus amigos estamos sentados numa esplanada da praia, quando um senhor francês de pouco cabelo branco, já nos seus setenta, se aproxima de nós e diz: “bonjour, jeunes hommes. Cette chaise - est-elle occupée?” O brilho do sol era intenso e eu estava virado a sul. Um momento que tudo tinha para ser banal não fosse o facto de, meses mais tarde, se ter começado a falar na possibilidade de Chris Marker ter estado na audiência a assistir às suas próprias sessões. De facto, várias fontes, quase todas elas sem certeza ou precisão, dão conta de Marker na zona: a jantar num conhecido restaurante, a visitar a Igreja Matriz, ou sentado no Diana Bar a ler um livro. Se não era ele, era alguém muito parecido. O meu amigo S., ainda que dado a pequenas efabulações, tem quase a certeza que reconheceu o realizador francês no Porto, na Rua Passos Manuel, mas não está certo se tal avistamento aconteceu em 1996. Eu também tenho quase a certeza que uma vez vi a Shirley McLaine numa esplanada em Paris, num fim de tarde de Dezembro. Mas, como diria o taberneiro René em Irma La Douce (Billy Wilder, 1963), “that’s another story”. Cinementira: 8 de Julho de 2017 Passei os Verões da minha adolescência no eixo Póvoa de Varzim - Vila do Conde. Aprendi a ser também destas cidades, a saber o nome das suas ruas, histórias de quem lá vive, a gostar de uma e de outra para além dos juízos de beleza e de habitabilidade, a conseguir identificar-lhes os cheiros e as luzes nas diferentes estações do ano. São lugares onde lembro o Verão e o cinema, lugares de onde tenho imagens e imaginações. Hoje, entre outras coisas, tenho a felicidade de escrever histórias para cinema, sobre cinema. A minha memória é feita de cinema. Como em La Jetée, convoco muitas vezes para o presente o passado e o futuro, certo da sua inexistência. E creio no cinema, no cinema como uma grande mentira, ainda que seja pelo cinema que encontro uma certa ideia de verdade próxima de uma frase de Alberto Manguel: “imaginamos para existir”. Em itálico, referências mais ou menos directos ao argumento de La Jetée (Chris Marker, 1962). A citação de Alberto Manguel é retirada da página 4 de Uma História da Curiosidade, Ed. Tinta da China, 2015. Este texto é, em grande parte, uma pequena ficção. |