in Fábrica, de Daniel Blaufuks, Ed. Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura e Pierre von Kleist Editions.
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
T. S. Eliot, Quatro Quartetos: Burnt Norton
I
A leitura de uma fotograia é um acto de silêncio. Ao propor uma construção mental inicialmente desordenada, feita pela justaposição de conceitos, de ideias, de reminiscências, talvez se possa dizer que uma imagem fotográfica (ou série de fotografias) não é legível em voz alta. É a ideia sem a condicionante da sua palavrização.
Ainda que a intensidade, o ritmo e o discurso lhe sugiram uma ideia de murmúrio, é desta forma muda que nos relacionamos com o que diz cada imagem e cada série de fotografias, cada exercício de discursividade fotográfica. Eis-nos perante a inquietação das imagens como superfícies signifcantes [1]: ali estão elas, tensas, a dizer coisas, a dizer o mundo, a fazer ruído em silêncio.
O universo destas inquietações possibilita um vasto número de abordagens e interpretações – narrativas, históricas, conceptuais e delirantes, por exemplo. A imagem provoca textos, ilustra textos, torna-se e deixa de se tornar uma parábola disto ou daquilo. Por isso, a leitura do fotográfico é um acto de liberdade: a deriva visual potencia, de forma mais ou menos nítida, uma deriva conceptual. Mas também de movimentos: a imagem fixa (a fotografia, o fotograma) é o início de todos os gestos – os que lhe precedem a paragem e os que a sucedem. Será nesta quietude que reside o fascínio de toda a imaginação? Questão irrespondível: quando muito, aqui habita uma vantagem da fotografia como frase incompleta, como frase que nos propomos ou não completar. Afinal, pela inconcludência também se fecha um ciclo.
II
Fábrica é um ensaio de imagens obtidas pela mediação da lente. Assim se apresenta, de forma conjunta, como livro de fotografia e como filme fotográfico. A sua estruturação é compassada e lenta. Num plano geral do trabalho de Daniel Blaufuks, Fábrica é parte de um obra densa, poética e atlântica, desenvolvida em torno da memória e da sua representação. Daí que, num campo propositivo, se alinhe tanto com Terezín (2007) como com Uma Viagem a São Petersburgo (1998): partes de um processo continuado de tornar a memória visível, palpável [2]. Blaufuks caminha pela imagem da fábrica, pela ideia de fábrica e pela memória da Fábrica. Em concordância com o que acima se escreveu, duas são as propostas de leitura de Fábrica: como um ensaio sobre uma ideia de fábrica, abstracta e genérica, e como uma reflexão sobre o abandono e o esquecimento. Pela conjugação destas duas possibilidades se chega também à aludida representação da memória enquanto tema central do trabalho de Blaufuks.
- sobre uma ideia de fábrica
Por muito que o seu nome apareça numa ou noutra imagem, talvez não seja importante ter presente que fábrica é esta. Dito de outra forma: a ideia de fábrica começa pela diluição da sua identidade, da sua localização. Detemo-nos apenas no essencial – uma grandiosidade física e espacial, um passado de prosperidade económica, um abandono nos dias de hoje. Com esta abstracção, põe-se de parte uma hipotética natureza documental das imagens para que se entre numa fábrica como espaço cénico, numa ideia de fábrica que sintetiza um modo de produção industrial assente numa organização necessariamente hierárquica, produtiva e moral. A partir daqui, deparamo-nos com um dos resultados possíveis desta mesma ideia: crescimento, queda e abandono. De forma não necessariamente cronológica ou narrativa, a imagem da memória (imagem de arquivo, imagem objectual) é confrontada com a palavra escrita e com o som. A leitura das Obrigações dos Operários, (onde a admissão ao trabalho implica imediata submissão) e das Obrigações do Director de Trabalhos (zelador da ordem, da moral e da produtividade), a escuta do som maquinal, ruidoso e cru que no filme se sobrepõe a estas imagens funciona como forte interferência na sua ilusória representação do tempo passado como tempo perfeito, harmonioso e quase feliz. Esta desconstrução torna então Fábrica num enunciado político, dando um corpo imagético à tese de Benjamin: uma fotografia das fábricas Krupp ou da AEG não revela praticamente nada sobre estas instituições [3]. A poética das imagens toma posição.
- sobre o abandono e o esquecimento
Como numa cidade fantasma, em Fábrica a presença humana perdeu-se na imagem do presente. Não há pessoas, nem sequer sombras. Apenas o som de passos, abandonados como o espaço em que se fazem ouvir. A representação figurativa é posicionada como imagem mediata, imagem de imagem e, desta forma, como imagem do passado. Dos rolos de fio vazios às gotas de água que caem dentro da Fábrica, da descontextualização dos objectos a uma secretária sem gavetas coberta de pó, do entulho acumulado aos escombros de uma oficina, tudo parece indiciar um triunfo da desordem sobre um modelo, bem legível no regulamento dos trabalhadores e nas imagens de arquivo. A pergunta impõe-se: o que aconteceu aqui? Uma devastação epidémica que queimou tudo? Um conjunto continuado de decisões que entorpeceram os processos até à sua decomposição? Uma vez mais, a imagem da ausência de pessoas, dos operários aos patrões: quererão ter esquecido? Estes são os momentos que a memória não quis lembrar e não arquivou. Aqui a convocação de Chris Marker: nós não lembramos, recriamos a memória como recriamos a história [4]. É então por entre estes momentos que Fábrica se propõe ser lida como uma reflexão sobre o abandono e o esquecimento, bem para além da comparação entre tempo passado e tempo presente, bem para além do campo da ruína: estamos já no domínio da desilusão.
1. FLUSSER, Vilém – Towards a Philosophy of Photogaphy, Ed. Reaktion Books, 2007, p. 8.
2. OLIVEIRA, Filipa – Works on Memory in Three Acts in Works on Memory, Ed. Ffotogallery, Wales, 2012, p. 16.
3. BENJAMIN, Walter – Pequena História da Fotografia, in A Modernidade, Ed. Assírio & Alvim, 2006, p. 259.
4. MARKER, Chris – Sans Soleil, França, 1983.
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
T. S. Eliot, Quatro Quartetos: Burnt Norton
I
A leitura de uma fotograia é um acto de silêncio. Ao propor uma construção mental inicialmente desordenada, feita pela justaposição de conceitos, de ideias, de reminiscências, talvez se possa dizer que uma imagem fotográfica (ou série de fotografias) não é legível em voz alta. É a ideia sem a condicionante da sua palavrização.
Ainda que a intensidade, o ritmo e o discurso lhe sugiram uma ideia de murmúrio, é desta forma muda que nos relacionamos com o que diz cada imagem e cada série de fotografias, cada exercício de discursividade fotográfica. Eis-nos perante a inquietação das imagens como superfícies signifcantes [1]: ali estão elas, tensas, a dizer coisas, a dizer o mundo, a fazer ruído em silêncio.
O universo destas inquietações possibilita um vasto número de abordagens e interpretações – narrativas, históricas, conceptuais e delirantes, por exemplo. A imagem provoca textos, ilustra textos, torna-se e deixa de se tornar uma parábola disto ou daquilo. Por isso, a leitura do fotográfico é um acto de liberdade: a deriva visual potencia, de forma mais ou menos nítida, uma deriva conceptual. Mas também de movimentos: a imagem fixa (a fotografia, o fotograma) é o início de todos os gestos – os que lhe precedem a paragem e os que a sucedem. Será nesta quietude que reside o fascínio de toda a imaginação? Questão irrespondível: quando muito, aqui habita uma vantagem da fotografia como frase incompleta, como frase que nos propomos ou não completar. Afinal, pela inconcludência também se fecha um ciclo.
II
Fábrica é um ensaio de imagens obtidas pela mediação da lente. Assim se apresenta, de forma conjunta, como livro de fotografia e como filme fotográfico. A sua estruturação é compassada e lenta. Num plano geral do trabalho de Daniel Blaufuks, Fábrica é parte de um obra densa, poética e atlântica, desenvolvida em torno da memória e da sua representação. Daí que, num campo propositivo, se alinhe tanto com Terezín (2007) como com Uma Viagem a São Petersburgo (1998): partes de um processo continuado de tornar a memória visível, palpável [2]. Blaufuks caminha pela imagem da fábrica, pela ideia de fábrica e pela memória da Fábrica. Em concordância com o que acima se escreveu, duas são as propostas de leitura de Fábrica: como um ensaio sobre uma ideia de fábrica, abstracta e genérica, e como uma reflexão sobre o abandono e o esquecimento. Pela conjugação destas duas possibilidades se chega também à aludida representação da memória enquanto tema central do trabalho de Blaufuks.
- sobre uma ideia de fábrica
Por muito que o seu nome apareça numa ou noutra imagem, talvez não seja importante ter presente que fábrica é esta. Dito de outra forma: a ideia de fábrica começa pela diluição da sua identidade, da sua localização. Detemo-nos apenas no essencial – uma grandiosidade física e espacial, um passado de prosperidade económica, um abandono nos dias de hoje. Com esta abstracção, põe-se de parte uma hipotética natureza documental das imagens para que se entre numa fábrica como espaço cénico, numa ideia de fábrica que sintetiza um modo de produção industrial assente numa organização necessariamente hierárquica, produtiva e moral. A partir daqui, deparamo-nos com um dos resultados possíveis desta mesma ideia: crescimento, queda e abandono. De forma não necessariamente cronológica ou narrativa, a imagem da memória (imagem de arquivo, imagem objectual) é confrontada com a palavra escrita e com o som. A leitura das Obrigações dos Operários, (onde a admissão ao trabalho implica imediata submissão) e das Obrigações do Director de Trabalhos (zelador da ordem, da moral e da produtividade), a escuta do som maquinal, ruidoso e cru que no filme se sobrepõe a estas imagens funciona como forte interferência na sua ilusória representação do tempo passado como tempo perfeito, harmonioso e quase feliz. Esta desconstrução torna então Fábrica num enunciado político, dando um corpo imagético à tese de Benjamin: uma fotografia das fábricas Krupp ou da AEG não revela praticamente nada sobre estas instituições [3]. A poética das imagens toma posição.
- sobre o abandono e o esquecimento
Como numa cidade fantasma, em Fábrica a presença humana perdeu-se na imagem do presente. Não há pessoas, nem sequer sombras. Apenas o som de passos, abandonados como o espaço em que se fazem ouvir. A representação figurativa é posicionada como imagem mediata, imagem de imagem e, desta forma, como imagem do passado. Dos rolos de fio vazios às gotas de água que caem dentro da Fábrica, da descontextualização dos objectos a uma secretária sem gavetas coberta de pó, do entulho acumulado aos escombros de uma oficina, tudo parece indiciar um triunfo da desordem sobre um modelo, bem legível no regulamento dos trabalhadores e nas imagens de arquivo. A pergunta impõe-se: o que aconteceu aqui? Uma devastação epidémica que queimou tudo? Um conjunto continuado de decisões que entorpeceram os processos até à sua decomposição? Uma vez mais, a imagem da ausência de pessoas, dos operários aos patrões: quererão ter esquecido? Estes são os momentos que a memória não quis lembrar e não arquivou. Aqui a convocação de Chris Marker: nós não lembramos, recriamos a memória como recriamos a história [4]. É então por entre estes momentos que Fábrica se propõe ser lida como uma reflexão sobre o abandono e o esquecimento, bem para além da comparação entre tempo passado e tempo presente, bem para além do campo da ruína: estamos já no domínio da desilusão.
1. FLUSSER, Vilém – Towards a Philosophy of Photogaphy, Ed. Reaktion Books, 2007, p. 8.
2. OLIVEIRA, Filipa – Works on Memory in Three Acts in Works on Memory, Ed. Ffotogallery, Wales, 2012, p. 16.
3. BENJAMIN, Walter – Pequena História da Fotografia, in A Modernidade, Ed. Assírio & Alvim, 2006, p. 259.
4. MARKER, Chris – Sans Soleil, França, 1983.