JONATHAN FAKENHAM, A CONDIÇÃO DO LUGAR E AS ORIGENS DO PRINCÍPIO DISCÓPICO
in Intervalo nº 5, O Híbrido, Lisboa, 2012. Os arquivos pessoais do químico, fotógrafo e pioneiro do cinema Jonathan Fakenham (1826-1919)[1] encontram-se depositados na Morrab Library em Penzance, na Cornualha, sua terra natal. São compostos por dezanove caixas, meticulosamente organizadas pelo próprio Fakenham que as agrupou em três conjuntos, reflexos das suas três grandes áreas de saber: química, escrita, imagem. Os arquivos são acompanhados por um documento com as suas disposições relativas ao acervo, caligrafado pelo depositante e datado de 1917. Se no primeiro e segundo conjunto encontramos, respectivamente, onze e cinco caixas com centenas de documentos, objectos e escritos correspondentes à actividade académica e teórica de Fakenham – trabalhou directamente com Sir David Brewster[2] na universidade de Edimburgo e depois ensinou em Cambridge – no terceiro encontramos, em três caixas, o corpo de trabalho fotográfico e cinematográfico cujo pioneirismo e importância têm sido reconhecidos nos anos recentes por teóricos e práticos da imagem fixada e em movimento. É lá que está o manuscrito do guião nunca filmado do documentário Athanasius Kircher’s Cathroptic Theatre, do qual Fakenham foi dos primeiros estudiosos[3] e as três bobines daquela que é tida como a primeira obra que comporta projecção dupla: Occlusion of one object by another (1899). No que concerne à imagem fotográfica, Fakenham organizou a sua obra em originais, destruindo todos os positivos que detinha, à excepção de quatro. Assim se lê na referida nota que acompanhou o depósito do seu espólio. As suas fotografias agrupam-se em placas de vidro de diferentes tamanhos, em novecentos e oitenta e quatro originais, onde se encontram as célebres People on their backs e o conjunto de duzentos e oito originais estereoscópicos que inclui o negativo em placa seca da intrigante Turks Talk, imagem referencial da história da estereoscopia fotográfica[4]. Porém, o corpo de análise mais fascinante (porque enigmático, por certo) encontra-se meticulosamente organizado numa pequena caixa de cartão de vinte e cinco por vinte por dez centímetros, utilizada como embalagem para placas de vidro à espera de emulsão. É sobre este conjunto de imagens que recai a nossa atenção, descrição e teoria. No interior da caixa estão quatro imagens estereoscópicas – as únicas impressões de todo o seu acervo - um envelope com títulos de transporte e de alojamento, um título de propriedade de uma máquina fotográfica G. Hare Stereo[5] e um caderno de anotações com as medidas de quinze por dez centímetros. Na primeira página do caderno está inscrita a palavra Discopy [Discopia], acrescida de uma proposta de sentido: “é a derivação para caminhos divergentes do sentido e significado da imagem estereoscópica. Se nesta a diferença é ínfima, e existe para que o nosso cérebro a processe precisamente da forma contrária – como absolutamente idêntica, semelhante, una na sua tridimensionalidade -, na discopia a sua dissemelhança remeterá sempre para uma ideia de unidade e de continuidade: as imagens diferentes são afinal uma só; não na sua estereoscopia, mas no seu sentido, metáfora e relação”[6]. O intrigante sobre esta nota é que não lhe é dada sequência alguma nem no caderno que a inclui, nem em qualquer dos restantes documentos que compõem o espólio de Jonathan Fakenham. A referência à discopia, seguramente um neologismo forjado pelo próprio autor, é solta, inconsequente e descontinuada em todo o corpo teórico de Fakenham. Não restam dúvidas de que esta nota terá sido o início de um caminho de investigação não prosseguido: as imagens que acompanham este caderno – e as suas notas subsequentes, assim o fazem crer. Nas duas páginas seguintes do caderno de Jonathan Fakenham estão desenhados, com elevada minúcia e rigor, dois mapas, com as inscrições manuscritas Cornwall e Cornouaille: um, do sudoeste da Cornualha inglesa, de onde sobressai o Arquipélago das Ilhas Scilly e o Cabo Land’s End. O outro, da Cornualha francesa, com a Baía de Douarnenez e a sua Ilha de Tristão [Île de Tristan] em evidência. Em ambos se assinalam, a tracejado, as possíveis localizações das ilhas míticas que lhes correspondem: no caso inglês, a Ilha de Lyonesse, comummente associada à lenda arturiana e localizada a oeste do extremo sudoeste da Cornualha e, no caso francês, a Ilha de Ys, no centro da baía de Douarnenez que, segundo a lenda, foi engolida pelas águas no século IV[7]. Na penúltima página caligrafada do caderno está escrito Tristan e na última, pode ler-se, em caligrafia apressada, Lyonesse – Scilly / Ys – Île de Tristan. E, na linha seguinte, TrYStan – lYoneSse – YS - YSeut[8]. A análise dos títulos de transporte e de alojamento permite estabelecer que o percurso traçado entre Setembro e Outubro de 1859 e entre Setembro e Outubro de 1860 corresponde aos locais assinalados no mapa: no primeiro ano, Fakenham viajou de Penzance para Hughtown, na Ilha de St. Mary, Arquipélago das Scilly; no segundo ano, atravessou o canal da Mancha de Plymouth para Roscoff e daí rumou até à baía de Douarnenez, não sem antes ter permanecido uma semana em Saint-Pol-de-Léon. Da relação de coisas constantes no caderno de viagens, ficamos a saber que Fakenham viajou com um carro laboratório com câmara escura, cem placas de vidro e respectivos químicos de revelação, bem como que utilizou o colódio húmido para a emulsão das suas placas. Porém, o resultado palpável e positivado desta viagem é profundamente escasso, cabendo por inteiro na caixa que o aloja: apenas se conhecem as referidas quatro estereoscopias, cada uma apenas com uma imagem cada – estando cada outra por sensibilizar. Para obter tal resultado, Fakenham utilizou um procedimento simples, não destapando a lente cuja imagem não quis impressionar gerando, desta forma, um positivo de fundo negro. Estas quatro estereoscopias incompletas de Fakenham sublinham e evidenciam o percurso traçado: no seu verso pode ler-se precisamente o lugar – real ou imaginário – que elas pretendem retratar: Scilly e Lyonesse (1859), Île de Tristan e Ys (1860). No caso das ilhas imaginárias, as imagens são recolhidas, respectivamente, do istmo de Land’s End e da baía de Douarnenez, apresentando as largas áreas de mar onde Fakenham, nos seus mapas, assinala a tracejado os possíveis espaços destes lugares fantásticos[9]. Eis-nos chegados, então, ao que Feeney[10] apelida de ponto de relação: a intersecção de elementos aparentemente desconexos e que, por tal fenómeno, ganham um sentido conjunto redireccionado. No caso em análise, a uma possível noção de discopia junta-se um conjunto de relações de lugares fantásticos com lugares palpáveis, a referência aos nomes de personagens lendários da mitologia celto-europeia e um itinerário de percurso consumado em duas viagens em dois anos. A conclusão começa a desenhar-se óbvia: Fakenham tentou estabelecer uma relação entre quatro lugares, dois reais e dois imaginários e a lenda de Tristão e Isolda, cuja história de amor inspirou as mais variadas artes. Terá, por certo, estudado as versões de Béroul, Eilhart von Oberg, Thomas d’Angleterre e de Gottfried von Strassburg[11] e, das suas conclusões terá surgido a relação lugar real – lugar imaginário, traçando as correspondências lógicas entre as Ilhas Scilly e Lyonesse e a Île de Tristan e a Ilha de Ys: em ambos os casos, as primeiras como locais físicos das segundas, seguindo uma lógica de entendimento expansiva da geografia da Cornualha, não se confinando esta à parte sul da ilha britânica, mas abrangendo também o extremo oeste da França. Aqui chegados, duas possibilidades se desenham. Por um lado, Fakenham poderá ter andado em busca do local de nascimento de Tristão, estabelecendo a seguinte possibilidade: se Tristão nasceu num lugar real, terá sido nas Ilhas Scilly ou na Île de Tristan. Se nasceu num lugar fantástico, terá sido nas Ilhas Lyonesse ou na Ilha de Ys. Por outro lado, numa aproximação menos extensiva à lenda, Fakenham poderá ter assinalado a ilha de Lyonesse / Scilly como local de nascimento de Tristão e Ys / Ilha de Tristão como local da sepultura de Tristão e Isolda: é sabido que a história narra que ambos foram sepultados lado a lado e que, dos seus túmulos cresceram frondosas árvores cujos ramos se entrelaçaram[12]. Porém, será demasiado redutor cingir a deriva de Fakenham e as quatro imagens produzidas a este corolário: uma síntese destas esbarra na natureza pouco dada à mitologia por parte de do autor inglês[13]. A referência, concepção e aplicação da noção de discopia a este corpo de trabalho acabam por retirá-lo, de forma clara, da narrativa em torno da lenda, transportando-o para o campo da teoria e prática da imagem. Jonathan Fakenham, de forma directamente honesta[14] estava, sim, a dar um passo importante na concepção moderna da teoria relacional da imagem: uma proposta de parificação entre o real e o imaginário, unificados numa imagem estereoscópica que, mantendo a forma e o seu princípio, se transforma noutra coisa qualquer. Na única referência que faz a este corpo de quatro imagens - numa resposta a uma carta de Paul Poissel datada de 7 de Julho de 1901 - Fakenham alude a “um trabalho fotográfico antigo, abandonado, em que cada imagem tem uma condição de compromisso com a imagem que se segue, que nunca é a expectável, que não é a que estereoscopicamente deveria ser”[15]. Desta forma, Scilly continua-se em Lyonesse porque o que uma retrata é o pretérito imaginado da outra. E o mesmo se passa entre a Ilha de Tristão e Ys. Será então de concluir que, num plano prático, esta deriva de Jonathan Fakenham – bem mais ontológica que mitológica - acabou por ser decisiva no germinar da sua obra maior, o já referido filme de 1899 Occlusion of one object by another. Em mais nenhum lugar do espólio de Fakenham (epistolária, cadernos de notas, memórias) se indica qualquer possível razão pela qual o autor não terá dado seguimento imediato ao trabalho e à reflexão subjacente. Porém, no que concerne à questão teórica inerente, a descoberta e estudo desta caixa – um pequeno relicário, ao fim e ao cabo – apresenta, de forma clara, as bases do princípio discópico, cujo debate e prática recentes têm entusiasmado pensadores e autores.[16] A proposição visual de Fakenham – o jogo relacional híbrido que estabelece com o leitor da imagem fotográfica – mostra um teórico e prático adiantado em relação ao tempo em que viveu, já não entendendo a fotografia como um modo de registo, fixação e documentação do real, capaz de portabilizar a experiência do lugar,[17] mas sim como um meio narrativo e relacional em que a condição do lugar não importa. * as traduções de excertos bibliográficos e as correspondências de unidades de medida foram feitas pelo autor do texto. [1] Uma nota biográfica sobre Jonathan Fakenham escrita pelo autor deste texto a partir da biografia de Fakenham por François Le Villard pode ser consultada em www.desordem.tumblr.com/fakehenam. [2] David Brewster (1781-1868) reputado físico escocês inventor do visor estereoscópico e teórico da difracção da luz. [3] FINDLEN, Paula, in Possessing Nature – Museums, Collecting, and Scientific Culture in Early Modern Italy, University of California Press, 1994, pág. 42, refere-se ao teatro catróptico como uma máquina de múltiplos espelhos que, combinados, produzem um infinito número de imagens. [4] Turks Talk é referenciada em diversos estudos de História da Fotografia. A imagem foi também objetco de várias aproximações teóricas, de entre os quais se destaca, pela estranheza, uma proposta sua contemporânea – nunca negada por Fakenham – que postula que a imagem é um auto-retrato sob disfarce. Cfr www.desordem.tumblr.com/fakehenam. [5] A máquina fotográfica estereoscópica, fabricada em 1857, faz também parte do espólio depositado. Ref. JFA109O. [6] Arquivo Jonathan Fakenham, Caderno de anotações. Ref. JFA378N. [7] MANGUEL, Alberto e GUADALUPI, Gianni in Breve Guía de Lugares Imaginarios, Ed. Gran Bolsillo, Alianza Editorial, 1980, pág. 657. [8] Segue-se a grafia do próprio Fakenham. [9] Numa diferente narrativa da mesma lenda, que Fakenham parece não seguir, o Arquipélago das Scilly e a Ilha de Tristão seriam os únicos pontos visíveis e não submergidos das ilhas lendárias de Lyonesse e de Ys. [10] FEENEY, Arthur James, op. cit., p. 34. [11] Existem exemplares de cada uma destas obras na biblioteca de Fakenham. [12] Seguindo Alan S. Fedrick, na introdução que faz a The Romance of Tristan, será pertinente assinalar que no início do século XX, o teórico Joseph Bedier constatou que “todos os poemas de Tristão conhecidos, medievais e modernos, podem remontar-se a um único poema, agora perdido, que será a fonte de toda a tradição e arquétipos das histórias de Tristão” – cfr FEDRICK, Alan S., in The Romance of Tristan, ed. Penguin Classics, pág. 11. Ora, de todas as versões conhecidas do poema, a do escritor medieval normando Béroul é a reconhecidamente mais antiga. É a partir desta versão que, segundo Bedier [op. cit] todas as outras se inspiram e derivam. Ainda assim, em qualquer uma delas o nascimento de Tristão, filho do rei Rivalen e de Blanchefleur acontece sempre ao largo da Cornualha. [13] Pese embora Fakenham tenha presenciado à estreia da ópera de Wagner, em Munique, a 10 de Julho de 1865: o documento JFA278D23 é um bilhete composto de tal evento. [14] NEWHALL, Beaumont – The History of Photography. Ed. MoMA, 1982 (reimpressão de 2009), pág. 141. [15] Documento nº 1412L do Centre de Documentation Paul Poissel, Aix-en-Provence, França: Réponse de J. Fakenham a une lettre de P. Poissel, 7 Juillet 1901. [16] Por exemplo De Sepi, Castro, van Kerkhoven, Maggesi, Brito, Bandeira e D’Orey. [17] LOURENÇO MARQUES, Susana, in A Viagem Imóvel - www.interact.com.pt/17/a-viagem-imovel/ |
Turks Talk, London, Charing Cross, 1866 , estereoscopia 17cmx8,5cm. Arquivo Jonathan Fakenham - Ref. JFA306P6.
Turks Talk, London, Charing Cross, 1866 (pormenor), estereoscopia 17cmx8,5cm. Arquivo Jonathan Fakenham - Ref. JFA306P6.
Caixa com quatro imagens, envelope com documentos, título de propriedade e caderno de anotações. Arquivo Jonathan Fakenham, Ref - JFA378B.
Lyonesse Island, 1859. Estereoscopia. 17cmx8,5cm. Arquivo Jonathan Fakenham - Ref. JFA378P1. Na imagem pode ver-se a Longships Lighthouse, construída em 1795.
Isles of Scilly, 1859. Estereoscopia. 17cmx8,5cm. Arquivo Jonathan Fakenham - Ref. JFA378P2. A imagem mostra um caminho do lado sul da ilha de St. Mary, a maior do arquipélago.
Ille de Ys, 1860. Estereoscopia. 17cmx8,5cm. Arquivo Jonathan Fakenham - Ref. JFA378P3. Imagem tirada do lado sul da baía de Douarnenez, com a península de Crozon ao fundo.
Ile de Tristan, 1860. Estereoscopia. 17cmx8,5cm. Arquivo Jonathan Fakenham - Ref. JFA378P4. Vista sudoeste da Ilha de Tristão.
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