GOLIAS
(monólogo para teatro ou algo parecido) (2010) Vós que me olhais, vós que me escutais, vêde: esta é a minha vida, a pobre vida triste de um bobo triste e pobre, a vida errante da margem, a vida esquecida do lado. Assim me vou frustrando, dia a dia, noite a noite, assim vou passando pelo tempo, tempo que me pôs homem a meio caminho de tudo. Nasci na velha vila do Castelo. Deram-me o nome de Golias. Fiz-me sozinho e caminhei mundo fora, já que minha mãe desgostosa, de mim pouco quis saber. Juntei-me a um bando de salteadores e saqueei mercadores na Geira e peregrinos no Caminho. Em Leão, na corte de Afonso X, aprendi as artes das letras e da música. Na Caledónia, o nome de todas as bestas do velho livro de Aberdeen e a ordem da mãe natureza. Num bordel na Aquitânia, a ciência indecente do amor e a técnica antiga dos malabares. Nas colinas da Toscana, a arte da pintura com o grande mestre Gennaro Valdostano. Nas planícies sarracenas da hispânia, uma feiticeira chamada Margagnon ensinou-me a ler o futuro. Ah, Golias, que homem te tornaste tu, senhor de todas as ciências, mestre de todas as artes. Andei pela estrada do mundo até me falharem as pernas. Depois, regressei. Porque, como me dizia um taberneiro da baía de Crunia, há que voltar sempre, não? E voltei a esta velha vila do Castelo, disposto a contar o que vi por este mundo fora, com a graça do verbo que aprendi a educar. Tornei-me contador de histórias e fazedor de risos. Truão da corte do senhor nosso rei, vêde vós. Bobo, por assim dizer. Eu, que em Paris ouvira os gritos de Triboulet quando pregado à árvore, seguia-lhe agora as artes, calcava-lhe então os passos. Assim subi ao Castelo e, com as minhas pantominas, fiz o rei arrotar de tanto rir. Com laudas e anedotário dignos da melhor literatura, com versos e melodias com lugar nos melhores cancioneiros, arranjei forma de saciar o meu estômago exigente, habituado às comidas do mundo e aos finos vinhos das melhores terras. Narrei todas as minhas viagens, serão após serão. Contei o que vivi e o que gostaria de ter vivido. Afinal, a imaginação importa tanto como a verdade e que lugar senão o primeiro deve ela ocupar nas tarefas de um bufo? E crede que vos falo verdade quando digo que minhas histórias tanto encantaram a rainha que ela, em prestimosos favores cujas graças minhas insuficientes sempre serão, me presenteou às suas aias. Por várias vezes as vi nuas e com elas me banhei, tocando-lhes o coração com o vigor das minhas palavras. Numa álea que só à realeza assiste, fui posto fora da alcáçova pelo herdeiro de sua majestade, estava já el-rei doente. Já não me divertes, Golias, disse-me o príncipe depois de gargalhar com mais uma pantomina minha. Eu, que o vira crescer e tornar-se viril homem, eu que lhe houvera ensinado todas as façanhas que aprendera, eu que pai presente para ele houvera sido, via-me agora posto fora, assim do nada, Golias outra vez na longa estrada do mundo. Por me faltar pecúlio, vi-me forçado a buscar mester noutras artes. Por tantas serem as que conheço, fácil se me antolhava essa tarefa. Porém, a todas me foram dizendo não, vêde vós: por não me crerem sabedor e crente, nas escolas gerais recusaram o meu saber e quiseram estudar-me; e na velha colegiada afogaram a minha fé chamando-me herege pagador de pecados. E nem para os insondáveis trabalhos do amor... nem para tal ninguém me quis. Não, tu não prestas, Golias, és um bufão mentiroso, diziam-me todos. Eu, Golias, homem do mundo, que em Ruão vi as chamas devorarem Joana d'Arc , naquela manhã de Maio, eu, Golias, o mais viajado da vila, do seu centro até ao Reno, mentiroso? Bardamerda. Ofereci-me ao exército, pronto para lutar pela causa que nele calhasse, com a fúria de todas as reconquistas e com o amor de todos os duelos, espumando raiva por qualquer inimigo. Afinal, eu era Golias, aprendiz da astúcia do guerreio com Willow Ufgood, manejador da espada com a destreza do apóstolo Santiago Guerreiro. Três dias e três noites vagueei pelo acampamento, senhor, quereis um pequeno mas experiente guerreiro, que combateu em Agincourt? Não me quiseram, antes de mim zombaram: Golias, bufo aldrabão, não serves para isto, me diziam entre escárnios de espécie tão má que ouso não dizer. Dores terríveis nas pernas, cansadas de tantas viagens, impediram-me de partir deste lugar desgastado, de seguir caminho, mais uma vez, por essa terra fora, ao encontro de inúmeras amizades que, seguro estou, me deitariam a mão amparando-me o apetite e a sede. Mendiguei pelas ruas todas, a meio caminho de tudo, entre o azar e a fome. Fui batido e apedrejado por miúdos e graúdos. Esconjurei a vida, de puta mãe filho chamei a quem de mim escarnecia. Afinal, eu era Golias, o viajante corajoso, o guerreiro astuto, o sábio aventureiro, entregue injustamente ao abandono dos homens ignorantes. E assim mais me não restou que ficar nesta vila sempre velha do Castelo, a minha vila, Golias subindo dia a dia a sinuosa estrada, à procura de cama para dormir, de carne para comer e de vinho para esquecer, uma canção por uma moeda, excelência, sem que ninguém se interesse por minha arte, qualquer que ela seja. Ò vida inclemente, que tratais desigualmente altos e baixos, ricos e pobres, nobres e bufões, nunca me haveis dito que seríeis fácil, mas fazei, ao menos, avançar depressa o tempo que passa por mim. |