HÁ QUE VOLTAR SEMPRE: A REFOTOGRAFIA E OS REGRESSOS
in Rever a Cidade, Ed. Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Uma pequena teoria dos regressos Conta-se que um dia um viajante regressou a um lugar inóspito, a um daqueles fins do mundo difíceis de chegar a que erradamente se diz que só se deve ir uma vez. Ao entrar na única taberna da aldeia, reconheceu o dono, mas manteve-se em silêncio. Este olhou-o devagar e antes ainda de lhe dar as boas tardes, disse-lhe: há que voltar sempre, não? Quatro são as histórias e o regresso é uma delas, escreve Jorge Luís Borges. Durante o tempo que nos restar continuaremos a contá-las, transformadas. [1] A refotografia faz parte desta história, desta pequena teoria dos regressos. É a prática deste voltar sempre, deste ir e voltar a tirar. O princípio básico da refotografia define-se de forma simples: é a produção (repetição) de fotografias tiradas anteriormente. Esta definição funcional tem pela frente um campo simbólico bem mais amplo: como qualquer prefixação, a refotografia implica um voltar a e este regresso—este acto de vontade—é motivado primeiramente por uma imagem fotográfica anterior. Ou seja, regressamos pelas imagens, sejam elas de natureza geográfica, geológica, histórica, memorial ou artística. Este regresso é mais ou menos exacto e estabelece uma relação de reconhecimento com uma imagem primeira, anterior, originária, só possível pela existência de um intervalo de tempo entre ambas. A refotografia implica também um exercício de confrontação e de reconhecimento, de constatação. Regresso e constatação: das imagens nascem imagens. A permanência das sombras O termo refotografia terá sido utilizado pela primeira vez pelo fotógrafo norte-americano Mark Klett, nos finais dos anos setenta do século passado, a propósito de Rephotographic Survey Project, um trabalho desenvolvido entre 1977 e 1982 que voltou a fotografar pontos de vista de registos fotográficos das missões geológicas do governo dos Estados Unidos levadas a cabo nas décadas de 1860 e 1870. O próprio Klett refere que a prática refotográfica é naturalmente bastante anterior à sua nomeação.[2] De facto, o primeiro trabalho refotográfico conhecido é da autoria do matemático e topógrafo alemão Sebastian Finsterwalder que através desta metodologia registou, entre 1888 e 1889, mudanças nos glaciares dos Alpes. [3] A refotografia surge naturalmente associada a uma ideia de verdade da imagem fotográfica, dominante nos primórdios da fotografia. Surge também como um tipo de fotografia de paisagem natural, encarada como um processo científico capaz de aferir e de documentar com extrema exactidão mudanças biológicas, geomórficas e climatéricas. Como tal, refotografar pressupunha um modo profundamente rigoroso de rever. As primeiras imagens refotográficas implicavam um afinamento minucioso das coordenadas temporais e espaciais de criação da imagem, exigindo uma determinação exacta do ponto de vista da fotografia originária, mas também (e preferencialmente) que a produção da imagem acontecesse à mesma hora e dia em que a primeira imagem se fez. No final da década de 1990, Robert H. Webb—fotógrafo da expedição geográfica de Stanton ao Grand Canyon em 1889–1890—definia refotografia como a ciência de localizar e reocupar, tão exactamente quanto possível, a posição da câmara de um fotógrafo prévio. [4] Até ao último quarto do século xx, a refotografia foi imagem da ciência, ao serviço da ecologia, do estudo do tempo nas mudanças do espaço. Dois exemplos significativos: em 1930, o astrónomo Clyde Tombaugh, descobre Plutão através de um princípio refotográfico, usando uma sequência de refotografias espaciais (blink comparator) que, pelo piscar de pontos luminosos, detectam a movimentação dos astros. [5] Anos mais tarde, em The Changing Mile (1965), Rodney Hastings e Raymond Turner [6] refotografam imagens da fronteira dos Estados Unidos—México, a partir de fotografias feitas feitas no Deserto de Sonora, Arizona, no final do século xix, apresentado uma surpreendente prevalência da mudança num local aparentemente imutável. Sem nunca perder de vista a análise de mesmidades, de erosões, de ínfimas mudanças—a sua génese e a sua base—a refotografia rapidamente se humaniza, tornando-se imagem da memória das obras dos homens e imagem da história que escrevem. [7] A imagem refotográfica passa a ter também um papel de constatação de qualquer coisa que se perdeu, de um processo de mudança: em suma, de um tempo passado (formulação híbrida do tempo pretérito e da passagem do tempo). Da nostalgia à enciclopédia Com o decurso de tempo capaz de tornar uma imagem numa superfície histórica, com a democratização da fotografia—e com a proliferação de arquivos fotográficos—a refotografia abre-se a novos sentidos, estabelecendo-se como meio relacional de dois tempos de um mesmo objecto fotográfico. A refotografia histórica (porque não de paisagem urbana?) é hoje em dia o exercício mais recorrente e popularizado desta função, confrontando presente e passado, vincadamente assente numa ideia de nostalgia. Uma pesquisa na rede social de partilha de fotos Flickr leva-nos a dezenas de grupos de trabalhos refotográficos sobre geografias humanas, em que as cidades assumem natural destaque: Now and Then, Atget Revisited, Before and After, bbc Turn Back in Time, Yesterday & Today são apenas exemplos (mais ou menos rigorosos, com ou sem curadoria) de resultados de uma procura do termo rephotography no referido Flickr. O intervalo temporal varia e torna-se ritmo do processo refotográfico: nove anos de diferença bastam para que Eric Fischer refotografe em 2009 as suas imagens de São Francisco no ano 2000. Mark Klett espera pelo centenário do terramoto da referida cidade (1906-2006) para, a partir de uma selecção de imagens de vários arquivos, publicar After The Ruins. Camilo José Vergara desde finais dos anos 1970 que mantém em permanente actualização Visual Encyclopedia of the American Ghetto, um trabalho que, a título de exemplo, já originou 26 imagens de um cruzamento no Harlem. [8] É nesta linha que a refotografia frequentemente se torna imagem das efemérides: regressar é um meio de assinalar a passagem de uma data simbólica (The Berlin Wall: 20 Years Later—A Division Through Time, publicado no New York Times em 2009 [9]). A refotografia de hoje generaliza-se e diversifica-se, ultrapassando a simples visão comparativa do passado-presente: Sergey Larenkov, refotógrafo de São Petersburgo, funde os dois tempos numa imagem só, com rigorosa precisão de perspectivas. Motivado por uma vontade de representação da imagem de guerra em cenários reconhecíveis nos dias de hoje, (a que não será indiferente a vivência pelos seus avós do cerco de Leninegrado na Segunda Guerra Mundial) Larenkov regressa a lugares de imagens da guerra e da sua refotografia faz emergir, de forma algo fantasmática, o passado no presente. Ainda dentro de uma ideia de fusão de tempos, plataformas como o historypin.com unificam imagens do passado com vistas do Google Street View; o software Google Earth disponibiliza rotas de viagens no tempo (Rephotographing the Iron Curtain). Nestes casos, a refotografia morde a sua própria cauda—a deslocação ao presente passa a ser virtual e a lógica inverte-se: refotografamos em casa, no computador, fazendo uma impressão de ecrã. Estaremos ainda a falar de refotografia? A reinvenção da memória Fascinado pela série televisiva Twin Peaks (David Lynch, 1990-1991), o autor do site intwinpeaks.com (dado a conhecer-se como Charles) empreende a tarefa de refotografar-lhe os cenários, materializando o universo do seu realizador. Ainda no universo cinematográfico, em Smoke (Wayne Wang, 1994), Auggie Wrenn todos os dias, às sete da manhã, refotografa a esquina da Rua Três com a Avenida Sete, em Brooklyn, Nova Iorque, compilando quatro mil fotografias desse lugar. Em cada um destes casos, esta natureza refotográfica (real ou ficcionada) ultrapassa a nostalgia: é já um mecanismo de actualização e reinvenção da memória. Mas compreende também uma ambição enciclopédica sempre re-actualizável. Dentro desta noção, os trabalhos colaborativos de Mark Klett e Byron Wolfe--Third View (thirdview.org, um projecto online de uma terceira imagem depois da já referida Rephotographic Survey Project de 1977) e Reconstructing the View (2007)—ao centrarem-se na refotografia de imagens de nomes incontornáveis da história da fotografia (Muybridge, Adams, Weston, entre muitos) tornam-se um mecanismo de reinvenção da própria fotografia (ou da memória da própria fotografia). O mesmo se pode dizer do trabalho de Douglas Revere que, em New York Changing (newyorkchanging.com) refaz, em 1997, a série Changing New York de Berenice Abbott, feita nos anos 1930. [10] Aqui chegados, a pergunta ganha sentido: não estaremos, afinal, a falar de uma lógica próxima do remake? Why should there be a solution, a significance? [11] Como ofício de revisitação, a refotografia é parte de uma necessidade humana e circular de recontar, é parte também de um processo reconfortante que cada releitura sempre traz consigo. Daí que se inscreva, então na linha da releitura, da recriação e do remake, [12] mas também da variação: a par do desafio à imperatividade da originalidade e da novidade, [13] estamos num campo de um conhecimento prévio (que implicará reconhecimento) e numa aferição da escala das alterações introduzidas (que implicarão surpresa). Nesta lógica de repetições [14] a refotografia replica uma imagem que já conhecemos, e fá-lo num quadro de uma forçosa originalidade e diferença—a história da arte e da literatura está cheia de remakes que dizem sempre algo novo: [15] outra vez Borges e a mesma história que se continua a contar, transformada. Este querer dizer algo de novo poderá ser a passagem para um espaço vincadamente autoral, em que o discurso refotográfico—proveniente de um património comum da memória—se assume como uma criação ou construção, capaz de acrescentar à imagem originária algo mais que uma repetição num tempo diferente. É que a repetição não se opõe à inovação: [16] a partir de uma imagem encontrada em Austerlitz, livro de G. W. Sebald, Daniel Blaufuks viaja até Terezin e refotografa a sala de leitura do campo de concentração nazi (Blaufuks: descubro então o local da fotografia do Sebald e faço a minha própria imagem). [17] Na série Ausências, o fotógrafo Gustavo Germano refotografa imagens da vida familiar de desaparecidos ou assassinados durante a ditadura militar argentina. [18] Na imagem posterior, há alguém que falta. Mas faltam também pequenos pormenores das imagens iniciais: flores, sorrisos, objectos pessoais. Ainda nesta lógica autoral, mas numa abordagem e sentido substancialmente diferentes dos anteriores, os auto-retratos de Noah Kalina, feitos diariamente desde 2000 e publicados em everyday.noahkalina.com, falam-nos também do nosso próprio envelhecimento. Desta forma, a refotografia transcende o exercício de repetição mecânica e de presente-passado, passando a fazer parte de um processo de autoria, de criação, de um discurso feito a partir de uma referência. Mark Klett e Byron Wolfe aludem a um diálogo entre imagens. [19] Sem nunca deixar de ser reflexo, a imagem segunda é ela própria espaço de reflexão e de imaginação enquanto faculdade de descodificar imagens (Flusser). [20] Estamos, então, perante uma vertente discursiva e autoral do princípio refotográfico. A refotografia torna-se também cinemática, política, narrativa e artística. Entre a ilusão de mesmidade e a compreensão da mudança, a refotografia dota a imagem prévia de um novo sentido: cada imagem posterior altera-lhe o código, escreve-lhe um novo capítulo e passa a ser parte da sua história. Com a imagem refotográfica, fecha-se o intervalo de tempo iniciado na imagem anterior. E logo se abre um outro: o da possibilidade da sua repetição interminável. James Elkins resume: a imagem prévia tem um tema, mas é invisível. A imagem posterior tem um tema, e é a imagem prévia. [21] E assim por diante, até ao infinito dos regressos dos homens aos lugares das imagens. Afinal, há que voltar sempre. Rever a cidade Rever a Cidade tem por base a Colecção de Fotografia da Muralha, Associação de Guimarães para a Defesa do Património. Este acervo é composto por cerca de cinco mil originais fotográficos—a maioria deles em gelatino-brometo de prata sobre placa de vidro—vindos, quase na sua totalidade, da Foto Eléctrica-Moderna & Foto Moderna, um estúdio fotográfico vimaranense activo, com estas duas denominações, entre os anos dez e os anos oitenta do século xx. [22] Esta colecção é rica em imagens do espaço público de Guimarães. Aproximadamente um milhar e meio de originais documentam a cidade, com maior ou menor ritmo, desde finais do século xix até meados da década de 60 do século xx. Por lá vemos uma Guimarães engalanada para receber Dom Manuel II em 1908, a Exposição Industrial de 1923, o Congresso Eucarístico de 1927, o processo e os trabalhos de requalificação da Colina Sagrada entre os anos 30 e 50 do século passado, as diferentes morfologias da Praça do Toural e centenas, senão milhares, de imagens da vida de todos os dias. Domingos Alves Machado, dono da Foto Eléctrica-Moderna é o presumível autor destas fotografias até finais dos anos 1940, altura em que cede o seu lugar ao seu genro, Amílcar Lopes. É necessário sublinhar que este exercício feito com Guimarães como motivo não é nem pretende assumir-se, quanto à sua forma, como pioneiro. Importa recordar que, em Agosto de 1979, a Comissão de Coordenação e Dinamização da Biblioteca Pública da Fundação Calouste Gulbenkian organizou a Exposição Guimarães, do Passado e do Presente, comissariada por Joaquim Fernandes, um dos interlocutores na compra da Colecção de Fotografia da Muralha. A exposição conjugava imagens antigas (algumas delas desta mesma Colecção) com “aspectos actuais que permitiram, assim, uma perfeita visão das profundas transformações que a cidade sofreu durante um século e das agressões urbanísticas cometidas ou consentidas pelas entidades responsáveis ao longo daquele período”. [23] Os referidos aspectos actuais eram as refotografias de Joaquim Fernandes, feitas com a maior exactidão possível. Em 1985, Guimarães, do Passado e do Presente conheceu edição em livro, tornando-se num objecto incontornável na história da fotografia em Guimarães. [24] E os fotógrafos voltaram Uma selecção de cento e cinquenta fotografias de espaço público do espólio da Muralha foi enviada a Carlos Lobo e Inês d’Orey, dois fotoógrafos de linguagens estéticas particularmente distintas, ambos com um trabalho consolidado na fotografia portuguesa dos inícios do século xxi. Desta selecção, os fotógrafos escolheram dez imagens cada, daqui resultando o processo de revisão da cidade: não só pela junção de uma sequência de imagens de arquivo, mas também através da produção de duas séries fotográficas autónomas sobre a cidade de Guimarães no verão de 2012, cuja riqueza lhes valida uma leitura com ou sem a ligação às imagens prévias. Dentro das diferentes formas de fazer imagens fotográficas, a refotografia é entendida por estes autores como uma noção que não depende de uma maior proximidade possível do ponto de vista original. Haverá sempre uma relação com ele, certo. Porém, a imagem anterior assume-se como um mote para os já aqui referidos remakes e variações. Inês d’Orey é-lhe particularmente tributária. Carlos Lobo usa-a como elemento inicial de uma deriva, fazendo-a ponto de partida, de passagem ou de chegada das suas narrativas. É através desta diferença, na interpretação e na criação de imagens fotográficas, que a cidade revista se enriquece: as histórias são múltiplas, distintas, complementares e permitem uma vasta escala de descodificações. As fotografias de Carlos Lobo mostram a cor dura das cidades no verão: sombras carregadas, verdes intensos, um céu opaco, algures na palidez do azul e do amarelo de estio, parecem querer falar de algo caótico, da desordem natural das coisas: o que acontece quando o fotógrafo chega é o que fica registado. A referida deriva permite ao fotógrafo uma imaginação da cidade feita numa relação de distância (não de distanciamento, sublinhe-se): saindo das imagens originárias, é a partir delas que constrói a sua narrativa, composta não só pelas imagens refotografadas, mas também por trípticos e dípticos por elas motivados—espaços onde o ritmo aumenta e diminui, onde os significados se compõem ou se escondem. Colocando-se no ponto de vista exacto da imagem 1131 da Colecção de Fotografia da Muralha, Lobo compõe um tríptico refotográfico ajustando-lhe o enquadramento e deixando acontecer o acaso: seis pessoas cruzam-se e afastam-se, no normal fluxo humano que atravessa a Rua Paio Galvão. Em Guimarães as perguntas impõem-se: conhecer-se-iam? Ter-se-ão cumprimentado? Esta cidade revista por Lobo é um lugar onde acontecem histórias, um lugar que se vê devagar, porque só demoradamente se compreende o que sucede nas imagens fotográficas—é lenta a aparição de personagens na imagem da Avenida Afonso Henriques (pág. 25). A leitura de fotografias presta-se a estas questões e é nas intermináveis equações que lhes dão resposta que mora uma parte importante do seu fascínio. De forma distinta, as fotografias de Inês d’Orey são silenciosas: o tempo decorrido é sinónimo de esvaziamento. Foram-se embora as pessoas, levaram consigo o ruído. A cidade está vazia, como poucas vezes a vemos. Recuperando o ponto de vista das imagens originais (por vezes com levíssimas flutuações), o confronto com as imagens anteriores torna-se directo e compassado. Cada uma corresponde a cada outra. As mudanças e as permanências acentuam-se e é talvez por isso que somos levados a olhar estas imagens para além do seu significado imediato: a imagem da Pensão Villas, nas Taipas (pág. 36), é a imagem melancólica do fim dos anos de ouro do Grande Hotel homónimo, mas também a imagem de um Hotel a deixar de ser Grande, primeiro, a passar a ser Pensão, depois, e terminando, por fim, como edifício emparedado—numa clara convocação de uma muralha (imagens das págs. 34 e 35), começara por ser um pano de publicidade e hoje é o lugar mítico do Aqui Nasceu Portugal. O trabalho de Inês revê Guimarães nas primeiras horas do dia—o relógio do Toural marca as 7.28, o sol da rua da estação é nascente, o céu indefinido da manhã atravessa praticamente todas as fotografias. A referida flutuação do ponto de vista original é poética: na imagem 2423 da Colecção de Fotografia da Muralha (pág. 33), é Inverno e dois terços do espaço fotografado são ocupados pelo chão do terreiro onde se inscreve o desenho de uma sombra de uma árvore despida; na imagem de Inês (pág. 32), a leitura destes elementos inverte-se, tal como o tempo do ano: agora é Verão e o terreiro ocupa apenas o terço inferior da imagem e as árvores, povoadas de denso verde, preenchem a maioria do espaço. Provas de contacto As séries de Inês d’Orey e de Carlos Lobo cruzam-se, numa primeira aproximação, na selecção idêntica de duas imagens a refotografar: a da Auto Garage Avenida (propriedade do fotógrafo Domingos Machado, importa referir) e a da casa na Rua Cónego Gaspar Estaço. Cruzam-se também no modo de ver a produção de refotografias: a circunscrição ao ponto de vista original não é nem um imperativo, nem um constrangimento. É antes uma motivação para a reinterpretação. E por fim, num pequeno, porém fascinante, pormenor: se as imagens das páginas 40 e 60 (imagem de baixo) refotografam, respectivamente, as imagens 1815 e 551 da Colecção de Fotografia da Muralha, as imagens das páginas 41 e 59 apresentam o que está por trás dessas refotografias, ou seja, o que os fotógrafos têm atrás de si quando as estão a fazer. Este gesto comum pode remeter-nos para a invisibilidade do fotógrafo—é apenas ele que falta naquelas composições, a registar a outra imagem. Mas também—e em ambos os casos—para os olhares impossíveis do rapaz da fotografia da página 39 e da senhora que, de forma discreta, aparece no passeio esquerdo da imagem da página 59 (imagem de cima). Haverá sempre lugar para mais imagens Os trabalhos de Inês d’Orey e de Carlos Lobo corporizam, pois, uma ideia de refotografia como um campo de criação relacional e autónomo. Mas são também corolário de um reconhecimento da importância de agitar e vivificar um arquivo fotográfico que, desta forma, age de um modo dinâmico e propositivo. O resultado é este: a construção de imagens feita a partir de imagens, em Guimarães, no verão de dois mil e doze—um ano diferente de todos os outros. * As traduções de excertos de obras devidamente identificadas são da responsabilidade do autor deste texto. Os títulos das obras mantêm-se na língua original da edição consultada. 1.BORGES, Jorge Luís--O Ouro dos Tigres, in Obras Completas, Ed. Teorema, 1998, pág. 511. 2.KLETT, Mark--Mark Klett, Rephotography, and the Story of Two San Franciscos - an interview with Karin Breuer --in After The Ruins 1906 and 2006 Rephotographing the San Francisco Earthquake and Fire, Ed. University of California Press, 2006, pág. 4. 3.WEBB, Robert H.--Grand Canyon, a Century of Change, The University of Arizona Press, 1996, pág. 30. 4.WEBB, Robert H.—op. cit., pág. 29. 5. in ELKINS, James--What Photography Is, Ed. Routledge, 2011, pág. 66. 6.WEBB, Robert H.—op. cit., pág. 30. 7. Referência a ALMEIDA, Bernardo Pinto de—A Imagem da Fotografia, Assírio & Alvim, 1995. 8. Rephotography, de Eric Fisher, disponível em www.flickr.com/photos/walk ingsf/sets/72157620565465613/; Invincible Cities, de Camilo José Vergara, em invinciblecities.camden.rutgers.edu 9. Acessível em www.nytimes.com/interactive/2009/11/09/world/europe/20091109-berlinwallthennow.html 10. Fenómeno diferente é o do trabalho de artistas como Sherry Levine e Richard Prince, mais próximos da apropriação que da refografia propriamente dita (Elkins, op. cit, pág. 70). 11.ELKINS, James—op. cit., pág. 61. 12. Segue-se a definição proposta por verevis, Constantin, em Film Remakes, Edinburgh University Press, 2006, p. 1: filmes baseados num argumento anteriormente filmado, novas versões de filmes existentes e filmes que, de uma ou outra forma, um ou mais filmes já realizados. 13.QUARESIMA, Leonardo — Loving Texts Two at a Time: The Film Remake, in Cinémas: Revue d’études Cinématographiques / Cinémas: Journal of Film Studies, vol. 12, n° 3, 2002, p. 73-84. 14.ECO, Umberto--Innovation and Repetition: Between Modern and Post-Modern Aesthetics in Reading Eco—An Anthology (editada por Rocco Capozzi). Ed. Indiana University Press, 1997, pp 18 e ss. 15.ECO, Umberto—op. e pág. cit. 16.ECO, Umberto—op. e pág. cit. 17. in Arquivo, Um Álbum de Textos, Ed. Vera Cortês, 2008, pág. 42. A imagem de Daniel Blaufuks da sala de leitura do campo de concentração nazi encontra-se publicada em Terezin, Ed. Steidl, 2011. 18. Um trabalho acessível em in www.gustavogermano.com 19.KLETT, Mark e WOLFE, Bryan,—correspondência pessoal de 19 de Setembro de 2012. 20.FLUSSER, Vilém--Towards a Philosophy of Photogaphy, Ed. Reaktion Books, 2007, p. 83. 21.ELKINS, James— op. cit., pág. 67. 22. A digitalização, classificação e par-tilha da Colecção de Fotografia da Muralha—por outras palavras: a transformação de um espólio numa colecção —é o centro deste projecto Reimaginar Guimarães, parte da programação de Cinema e Áudiovisual da Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura. Sobre a história desta colecção fotográfica, ver marques, Susana Lourenço--A Cidade de Vidro e brito, Eduardo--Imaginar Histórias na Cidade, in A Cidade da Muralha, ed. Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, págs. 20 a 45. 23.BRITO, Eduardo--A Cidade Imaginada, in www.eduardobrito.pt/a-cidade-imaginada.html 24. Guimarães, do Passado e do Presente, ed. Câmara Municipal de Guimarães, 1985, com textos de Santos Simões, Maria Adelaide Pereira de Morais, Fernando Távora, Alves de Oliveira e Moura Machado. Em 2009, um livro com o mesmo título, com fotografias de Paulo Pacheco, actualiza a edição dos anos oitenta. A edição—e não uma reedição, uma vez que contém, e com o maior destaque visual, novas imagens refotográficas—é da Câmara Municipal de Guimarães. |
Sergey Larenkov:Leningrad 1941 / St.Petersburg 2012 Rua Vosstaniya com Rua Kovenskiy – Crianças durante o Cerco de Leninegrado.
Sheriff’s Department. Twin Peaks / Snoqualmie Falls, Washington State, Estados Unidos da América. Imagens retiradas de intwinpeaks.org.
Mark Klett and Byron Wolfe, 2001. Panorama of a ghost river, made over 100 meters and two days beginning and ending with Muybridge’s mammoth plates No. 11 and No. 12. Muybridge’s pictures courtesy of the Bancroft Library, University of California, Berkeley. [carregar para ampliar]
|