IMAGINAR HISTÓRIAS NA CIDADE
in A Cidade da Muralha, Ed. Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura. Era o Verão de 1981. Todas as noites, Miguel Frazão e Joaquim Fernandes encontravam-se invariavelmente à janela do número 1 da Rua dos Combatentes, ali atrás do Tribunal. Detinham-se à conversa com Amílcar José Lopes Ricardo. Falavam de fotografias. Miguel Frazão, arquitecto, tinha 27 anos e acabara de chegar a Guimarães. Joaquim Fernandes, bibliotecário e fotógrafo, era já um nome incontornável na cultura da cidade. Ambos faziam parte da recém criada Muralha, Associação de Guimarães para a Defesa do Património. Amílcar Lopes (1912-1983), fotógrafo, dirigira a Foto Moderna desde meados da década de cinquenta de novecentos até à sua reforma, por volta de 1977. Na casa dos Combatentes, debaixo das escadas, havia cerca de duzentos ne- gativos em placas de vidro com imagens de Guimarães e da sua região. Originais fotográficos, portanto. Uma grande parte dessas fotografias tinham sido tiradas pelo fotógrafo Domingos Alves Machado, a outra pelo seu genro, Amílcar Lopes, o homem que nesse mesmo Verão de 1981 e depois de inúmeras conversas com Miguel Frazão e Joaquim Fernandes vendeu à Associação Muralha cerca de du- zentas imagens de Guimarães provenientes da sua Foto Moderna, ali à Alameda de S. Dâmaso. Poucos anos mais tarde, mas já na segunda metade da década de oitenta, por iniciativa de António Emílio de Abreu Ribeiro dá-se uma outra compra, desta feita a um antiquário da Rua de Santa Maria: coincidentemente, mais placas de vidro provenientes da Foto Moderna—e da sua antecessora, a Foto Eléctrica Moderna. São milhares de retratos de estúdio e imagens da cidade, até então arrumadas durante décadas num gavetão de um armário. A Foto Moderna era uma casa com história. Nascera no ano de 1910, por obra de Domingos Alves Machado (1882-1957), com o nome de Foto Eléctrica Moderna e estúdio ao número 141 da Avenida do Comércio (actual Avenida Afonso Henriques). Quem por lá hoje passa e olha para cima consegue avistar, por entre o arvoredo, o busto de Nicéphore Niépce, um dos inventores da fotografia. Entre finais da década de quarenta e inícios dos anos cinquenta, a Foto Moderna muda-se para a desaparecida Rua de S. Dâmaso, instalando-se junto à igreja homónima. Por lá permanece até à demolição daquele quarteirão, em 1958, passando depois para o número 1 do Largo 28 de Maio (actual Alameda de S. Dâmaso), no primeiro andar do edifício contíguo à Torre da Alfândega. Como Foto Moderna, permanece aberta até 1987, altura em que, por mudança de dono, passa a denominar-se Foto Machado. Domingos Alves Machado—o Fotógrafo Machado, como era conhecido— fotografou durante mais de trinta anos. Devem-se-lhe milhares de retratos de estúdio e inúmeras imagens de exterior. Terá parado de fotografar nos inícios da década de 1940, abalado profundamente pela morte do seu único filho rapaz. É por essa altura que a casa de fotografia passa para as mãos do seu genro, Amílcar Lopes. Quando chegou a Guimarães em 1924, Amílcar Lopes tinha doze anos. Vinha para ajudar o Senhor Machado na casa de fotografia, recomendado por um correeiro, que o conhecera em Murça, onde nascera e vivera até então. É que Amílcar herdara do seu pai—que trabalhava num Boticário—o jeito e o rigor necessários para a mistura de químicos. Instala-se em casa do seu patrão e apaixona-se por uma das filhas deste, Armandina, com quem casa em 1942. Gradualmente, vai deixando de trabalhar apenas no laboratório, passando a assistir e a ajudar o Senhor Machado nas suas saídas fotográficas à cidade, ocupando-lhe naturalmente o lugar quando este deixa o ofício. Amílcar Lopes torna-se então o Amílcar Fotógrafo, retratista de estúdio, repórter da cidade, dos seus espaços e ofícios, inseparável de Mário Cardozo no registo da vida da Sociedade Martins Sarmento. Mantém-se activo até ao final dos anos setenta, altura em que passa o negócio ao seu filho João Ricardo Machado Lopes, que dele se desfaz em 1987. Assim se apresenta, de forma breve, a possível história das fotografias da Colecção de Fotografia da Muralha: um conjunto de milhares de imagens de Guimarães e da sua vida, de cidades e lugares vizinhos, de retratos de estúdio, de fotografias para edições. Um conjunto de originais fotográficos da Foto Eléctrica Moderna e da Foto Moderna, que se juntam no acaso de arrumações e que se assumem como um dos mais consistentes acervos fotográficos da cidade de Guimarães. A autoria destas imagens é imprecisa mas provável: Domingos Alves Machado, entre os inícios da década de dez e os finais da década de trinta do século xx e Amílcar Lopes, daí até ao final dos anos sessenta. E também alguém que os antecede, de identidade ainda incerta, autor das imagens mais antigas deste acervo, datadas possivelmente de inícios da década de noventa do século xix. Apesar de anteriores à criação da Foto Eléctrica Moderna, estas escassas primeiras imagens da Colecção de Fotografia da Muralha aparecem como parte integrante do espólio daquele estúdio fotográfico. Porém, não é ainda possível, com a devida margem de segurança, afirmar-se a sua provável autoria. Esquecidas que estiveram durante mais de meio século, as imagens que com- põem este acervo chegaram às mãos da Muralha num precário estado de lim- peza e de conservação, sem qualquer tipo de descrição e organização lógica ou temática. Apenas uma ou outra sequência escapou a uma separação e desorde- nação quase natural. Durante quase vinte anos, a Colecção de Fotografia da Muralha ocupou o sótão da Associação dos Reformados, à Rua de Santo António, em condições ambientais e de acomodação profundamente adversas. A partir do ano 2000, mudou-se para a Biblioteca Raul Brandão. Sempre sem nenhuma intervenção de conservação ou de catalogação, sujeita frequentemente a consultas e pesquisas que a fragilizaram e desalinharam ainda mais. Desde 2009 que a Colecção se encontra depositada no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, em sala com controlo de temperatura e humidade. Nessa data, uma primeira des- crição e sistematização foi levada a cabo por Fernando Conceição, então presi- dente da Muralha. As fotografias desta Colecção têm um interessante histórico de publicações e exposições: a título de exemplo, constituem parte importante do incontornável Guimarães, do Passado e do Presente (Ed. Câmara Municipal de Guimarães, 1985) e foram apresentadas em diversas mostras—a mais recente em 2009, denominada Guimarães a Preto e Branco. A Colecção de Fotografia da Muralha conhece hoje um esforço de conservação, de arquivo e de partilha—são estas as principais linhas do programa Reimagi- nar Guimarães, da Área de Cinema da Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: conservar pela limpeza de cada negativo, pela sua digitalização em alta resolução e pelo reacondicionamento destas imagens, transformando-as num Arquivo através da sua descrição detalhada, da sua datação o mais rigorosa pos- sível e organização temática, acessível ao mundo inteiro pela sua publicação on- line enquanto arquivo digital em www.reimaginar.org, partilhado entre todos não só deste modo, mas também através de exposições e edições. A Cidade da Muralha é o primeiro passo deste processo, a primeira relação de possibilidades infinitas que os Arquivos sempre oferecem. A exposição apresen- ta uma selecção de fotografias de espaço público ou semi-público de Guimarães que a Colecção de Fotografia da Muralha contém. As imagens apresentam-se sem tratamento intenso, não se lhes escondendo o dano, o desgaste, a erosão e o trabalho posterior—reenquadramentos e correcções—feito no laboratório do fotógrafo: estas fotografias aparecem não só como produtos do seu tempo fotográfico, mas sobretudo do seu tempo de esquecimento e tempo de espera. Desta leitura do Arquivo—a tal relação de possibilidades infinitas—propõe-se uma deriva por esta cidade exterior em cinco segmentos: começa-se por uma Guimarães que não se vê mais; passa-se pela cidade feita de pessoas nas suas festas, ofícios e cultos; entra-se no lugar imaginário das narrativas possí- veis; constata-se o tempo a passar no regresso dos fotógrafos aos lugares já fo- tografados e sai-se de cena com a cidade a refazer-se, a ganhar uma forma que ainda hoje é palpável. É desta forma que A Cidade da Muralha tenta ser um lugar imaginário. Mais narrativo que histórico. Mais relacional que cronológico. Esta é a proposta, hoje: olhar para a cidade de Guimarães fotografada ao longo de seis décadas e ler todas e cada uma das histórias que cabem dentro destas imagens. Reimaginar a cidade, portanto. |
Igreja de S. Domingos, circa 1930. Negativo em gelatino-brometo de prata sobre placa de vidro, 13×18cmColecção de Fotografia da Muralha.
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