Sobre um Impasse Mexicano em Guimarães in Guimarães, Cidade Visível #3, Jul-Dez 2016 1. Imagem Cinco mil seiscentos e trinta e seis originais fotográficos, negativos de gelatina-brometo de prata em placa de vidro e negativos em película de gelatino-brometo de prata, fazem, à data de hoje, a Colecção de Fotografia da Muralha, Associação de Guimarães para a Defesa do Património. As imagens, quase todas provenientes do estúdio fotográfico vimaranense Foto Eléctrica-Moderna, cobrem um período temporal aproximado entre 1890 e 1960, e uma temática que vai do espaço público - da vida na cidade, no campo e na indústria - à foto de estúdio, com paragens curiosas em pequenas encenações feitas em estúdio. Este espólio, tratado e arquivado durante a Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, está actualmente online em reimaginar.org, assim se cumprindo numa função de partilha e disponibilização ao mundo [1]. Em Uses of Photography [2], John Berger defende a construção de um contexto para a leitura de imagens fotográficas – contexto esse feito de palavras, de outras imagens e das emanações de uma memória radial, que não se esgota numa interpretação única e linear. Escreve: “nunca há uma única aproximação a algo lembrado”. E a memória, tão ligada à imagem fotográfica pela sua base de apreensão química e binária do real, é assim vista como processo simultâneo de inclusão e exclusão (político e ficcional, portanto), também ele tão ligado à imagem fotográfica, neste caso pela sua base de enquadramento. Quer isto dizer que hoje em dia, em tempos de uma pandemia das imagens, será importante (para não dizer essencial) deslocar a simples leitura de uma ou várias imagens fotográficas para além dos binómios bonito/feito, gosto/desgosto; bem para além dos discursos do tecnicamente irrepreensível e do tempo congelado, da documentação histórica da realidade. Porque a imagem fotográfica, podendo ser isso tudo, é nisso tudo uma grande tautologia. Tempo para perguntar, então: o que podemos ler numa fotografia? Se a imagem se inscreve no imaginário, este transporta-nos, não só pela intuição mas também pela lógica, para a imaginação. E dentro desta noção radial da memória de Berger (bem diferente de uma visão linear e historicista), a leitura das imagens fotográficas deve potenciar uma motivação visual para falar, para associar, para escrever sobre, para apresentar propostas no contexto e linguagem das imagens. E, claro está, para continuar a contar histórias. 2. Impasse Por isso, esta imagem podia, de facto, convocar o pitoresco, o cómico, a memória de um tempo antigo, distante, que não vivemos e que quase sempre cai na grande ilusão de um quand il était beau, como se o passado fosse um filme a preto e branco, quase sempre com final feliz. Mas não, bem longe disso. Esta fotografia, tirada possivelmente por Domingos Alves Machado no estúdio da sua Foto Eléctrica-Moderna em Guimarães, ao número 141 da antiga Avenida do Comércio (hoje Avenida Afonso Henriques), algures entre 1910 e 1920, convoca, sem grande margem para dúvidas, toda a complexidade da teoria dos impasses mexicanos. Um impasse mexicano pode definir-se como uma relação triangular de confronto, pautada pela ameaça e tensão permanentes, cujo desfecho é determinado por duas causas possíveis: uma, exterior e indeterminada (e por isso mesmo imprevisível); outra, interior, que decorre no espaço triangular – a decisão de um dos três intervenientes de aniquilar um segundo possibilitará que o terceiro anule o primeiro e assim vença a contenda. Ora, a sua qualificação como impasse deve-se naturalmente ao facto de ninguém, em plena lucidez, querer tomar a iniciativa, numa lógica contrária aos tempos modernos: o primeiro empreendedor será o último derrotado. Graças a esta complexidade formal e simbólica, várias teorias circundam em torno do impasse mexicano: já se escreveu, inclusivamente, que se trata de uma glorificação táctica da preguiça – num impasse mexicano, a preguiça é uma mais-valia. O cinema, bem mais do que a fotografia, tem sido um campo fértil na representação de impasses mexicanos. Impasses memoráveis entram na história da sétima arte, como por exemplo os filmados por Sam Peckinpah em Straw Dogs (1971), pelas irmãs (então irmãos) Wachowski em The Matrix Revolutions (2003) e por Martin McDonagh em Seven Psychopaths (2012). Claro está que não será possível falar de impasses mexicanos na sétima arte sem referir o meta-impasse de Tarantino em Reservoir Dogs (1992), Pulp Fiction (1994 – “everybody cool, this is a robbery”) e Inglorious Basterds (2009), num tríptico que mais não é que característico do próprio impasse. E, por fim, o impasse dos impasses que opõe Tuco, Blondie e Angel Eyes no clássico Il buono, il brutto, il cattivo, filmado por Sergio Leone em 1966. 3. Imaginário De regresso à imagem fotográfica, deparamo-nos aqui também com a encenação de um impasse mexicano. Desta feita, em Guimarães e na fotografia. O lado teatral ou cinematográfico desta imagem, pela sua natureza encenada, permite que uma encenação se sobreponha à própria encenação: desta forma, será possível dizer-se que nesta fotografia, os senhores Alcino Meira, Alberto Magalhães e Álvaro Dyke vestem, respectivamente, a pele de João Reguila, Carlos Pequeno e Augusto Macabro: todos personagens da peça de teatro Rapto na Rua de Gatos. Sem margem para quaisquer dúvidas, os actores representam um impasse mexicano, ainda que neste caso o dito impasse possa ser qualificado de imperfeito já que Carlos Pequeno não tem consigo o bastão - uma ausência que, em bom rigor, não significa uma diminuição nas possibilidades de Carlos vencer o confronto, pelo facto de se tratar precisamente de um impasse mexicano – no qual a iniciativa, bem mais do que a falta de armamento, é meio caminho andado para a derrota. Pouco se sabe sobre os três agentes deste impasse: Álvaro Dyke, lisboeta de ascendência inglesa, radicou-se em Guimarães no início dos anos 1910. Foi actor e encenador na região. É dele a autoria da peça de teatro que origina esta imagem. Alcino, caixeiro viajante à data da imagem, radicou-se em Timor nos anos trinta e de lá nunca mais voltou ou deu notícias. Berto, bombeiro, raras vezes saiu da cidade, dizendo sempre que não precisava de conhecer mundo porque Guimarães lhe bastava. Era figura muito acarinhada por todos. Por fim, sabe-se que esta fotografia viria a servir de fonte para a elaboração de um cartaz da peça, que foi levada à cena pela Academia Problemática de Guimarães que, pese embora se tenha dado como extinta em 1888, continuou as suas actividades de forma furtiva até aos dias de hoje, como é do conhecimento de muitos dos que pensam e imaginam a cidade. 4. Corolário: a tripla encenação. Toda a imagem fotográfica toma posição. Por isso se lhe deve questionar o papel de documento: neste caso, o retrato de uma encenação torna-se numa dupla encenação que, graças a estas palavras, se transforma numa outra: a escrita sobre esta imagem mais não é que um terceiro acto de uma coisa que aconteceu, mas que nunca aconteceu bem assim como se nos é dada a ver. Três encenações, portanto, tantas quanto os elementos de um impasse mexicano. -------- [1] Sobre a Foto Eléctrica-Moderna, ver MARQUES, Susana Lourenço: “A cidade de Vidro — uma casa comercial de Fotografia em Guimarães” in A Cidade da Muralha, Ed. Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, 2011, p. 26 e ss.. Sobre a Colecção de Fotografia da Muralha ver BRITO, Eduardo; BRITO, Francisco e TEIXEIRA, Miguel: “Plano Geral” in Plano Geral – Grande Plano, Ed. Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, 2012, p. 126 e ss. Estes textos estão disponíveis em www. reimaginar.org [2] BERGER, John, “Uses of Photography” (1978) in Understanding a Photograph, Penguin, 2013, p. 59-60. Imagem: PTRMGMRCFM3374 Homens em estúdio fotográfico encenando luta. Décadas de 1910/1920. Negativo em gelatino-brometo de prata sobre placa de vidro,18×24cm. Colecção de Fotografia da Muralha, Associação de Guimarães para a Defesa do Património. |