onde a memória se detém. *
A expedição punitiva de Decimus Junius Brutus às Hispânias chegou à margem sul do rio Lima no verão de 135 a. C.. O tempo estaria invulgarmente quente. E os soldados profundamente fatigados. Havia uma crença que corria pela legião: aquele rio era o rio do esquecimento - quem o cruzasse, perderia a memória de tudo o que houvera vivido e aprendido. O rio Lethes. Dizia S.: sempre que penso em esquecer o que quero e o que preciso esquecer, a fixação do que quero esquecer cresce e torna-se mais forte. Lentamente, a minha memória passa a ser feita de recordações sobre recordações de tentativas de esquecimento. É como se areia me corresse nas veias, esvaziando-lhes o sangue. E a memória da lembrança derrota a ciência do esquecimento. Toda a legião de Decimus Junius Brutus se recusou a atravessar o rio. Ninguém queria esquecer. À ordem do general, nenhum soldado avançou. Alguns voltaram para trás. Brutus ordenou então às tropas que observassem o que ele se preparava para fazer. Atravessou o rio e, da outra margem, chamou os seus homens pelo nome, um a um. No verão de 2006, N. destruiu cinco mil horas de fita de vídeo onde, durante seis anos, gravou o tempo dos lugares em que viveu ou por onde passou. Quero documentar a história do meu tempo e a memória é a única forma de regresso, escreveu no início da sua longa recolha. Ao desfazer-se de tudo o que gravou, N. mergulhou no Lethes. Antecipou o instante em que tudo se esquece, em que a memória se apaga na desintegração do mundo. No lento instante em que Decimus Junius Brutus se deixou molhar pela água do Lethes, iniciando a sua travessia, pensou: o que me espera do outro lado da memória? Auggie Wren é dono de uma tabacaria em Nova Iorque. Todos os dias, exactamente às sete horas da manhã, fotografa a esquina da Rua Três com a Sétima Avenida. Estamos no filme Smoke, de Wayne Wang e Paul Auster. Ao longo de dezenas de anos, Auggie arquiva e cataloga mais de quatro mil fotografias desse mesmíssimo lugar, povoado por milhares de pessoas em trânsito. Quando mostra a sua colecção de imagens a Paul Benjamin, este percorre-a em ritmo apressado, quase automático. Auggie diz: you'll never get it if you don't slow down, my friend. * texto publicado na VAAA #1 - Veículo para os Assuntos da Arte e Arquitectura, em Novembro de 2009. |