Ossia
(para Tudo Nunca Sempre o Mesmo Nada, de Tiago Cutileiro) 1. como se fosse o princípio Era essa a ideia de magia: a transformação de uma coisa em outra. A lembrança numa imagem, o fonema num glifo, a grafia em palavras. Talvez a vontade de ordenação de todos os elementos do mundo venha daí, de um desejo intemporal de codificar para compreender, de entender para depois transformar. A desordem é-lhe anterior e posterior, origem e sequência: o acaso como avanço, alinhamento e classificação como intervalos de uma grande mancha sem forma, tudo como nunca sempre. 2. i am another now and yet the same Ele escreve: passaram anos suficientes para que todas as tuas células sejam já outras. Depois, relembra uma conversa no metro sobre o que decidiram chamar de presenteza (ambos praticavam a neologia) e algumas teses que definiam a duração desse mesmo presente: duzentos milissegundos, quinze segundos, de dez a quarenta e três segundos, os sete minutos da impressão de Monet. Mais tarde, mas ainda nesse dia, sentiu-se pela primeira vez em muito tempo outro. 3. estamos sempre sozinhos (o princípio da solidão) No filme The Kindergarden Teacher (Sara Colangelo, 2017), Jimmy, um rapaz de cinco anos, entra frequentemente numa espécie de transe, enquanto brinca ou antes de adormecer: da sua boca — pela sua voz — saem poemas (o que diz são construções a partir de versos de Ocean Vuong). Numa cena de grande beleza, depois de viajar com a professora até um lago, acontece-lhe uma dessas revelações. Enquanto nadam, Jimmy diz: tenho um poema. A professora sai da água para apanhar as palavras em órbita. Escreve o que o rapaz está a dizer, comove-se quando Jimmy diz loneliness is still time spent with the world. Desordem: palavra voz escrita filmada mentira epifania anotação (dar forma ao que gravita) cinema o mesmo diferente nada. 4. demasiado cheia de palavras para conseguir exprimi-las Portanto: existe um ruído do mundo, inerte, demasiado lento para ser escutado, que depois ascende até às paisagens e às cidades e que talvez o vento e as invenções do homem amplifiquem. Um murmúrio que chama a si a atemporalidade (a narrativa em que nada acontece, uma manchinha a desaparecer tão depressa no jardim que quem passar logo à tarde pela casa nem sequer repara que algum dia existimos), todas as palavras do mundo, o fim da música mas também o seu início. 5. my name is history and I repeat myself ela diz: já imaginaste um mundo sem polaridades, sem bem nem mal, ou melhor, no qual bem e mal não são faces opostas de uma mesma dimensão, mas pontos recorrentes e aleatórios de uma circunferência? Não haveria maior vazio que uma infinita sucessão de acasos, não haveria maior frustração do que a inexistência de uma cosmogonia, e de paradoxos. Como conversas soltas que ainda se apanham nos cafés antigos: vozes baixas, mas perceptíveis, num primeiro plano; mais difusas ao longe, ambas entre ruídos de máquinas e chávenas e pessoas que passam, entram, saem, portas que se abrem, a cidade lá fora. Apenas uma palavra ou outra se apreende no eco: a sua relação poderá fazer sentido, se o acaso o potenciar numa ínfima probabilidade: um mosaico. 6. aqui fico, onde o tempo me deixou O que acontece então quando distendemos a duração das palavras, quando decidimos dar forma ao murmúrio do mundo? São ainda palavras o que ouvimos (significam o mesmo)? Entendemos por fim o ruído inerte? Regressamos à mancha antes da forma: passamos por ela na velocidade do nosso tempo no mundo e se desacelerarmos, talvez vejamos algo: a memória numa imagem, o fonema num caracter. Haverá nisto outro sentido, o das coisas outras coisas, palavras de novo ante-palavras, o maravilhamento para além da sua explicação, o mistério, a desaparição. [os títulos de cada tópico são frases retiradas do libreto de Tudo Nunca Sempre o Mesmo Nada] |
Publicado no livro-caderno da ópera Tudo Nunca Sempre o Mesmo Nada, de Tiago Cutileiro.
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