PEQUENA TEORIA DO FOTOGRAMA
in Pancho Guedes Nunca Foi ao Japão Ed. ESAD, 2015. [fotografias de Pancho Guedes] scroll down for english Encontrei-o uma vez apenas. Uns amigos falaram-me dele, do que tinha feito, do modo como pensava. Sabendo que iria passar pela cidade onde estava a morar, pediram-me que lhe entregasse uma encomenda: uma caixinha com fotografias. Assim o fiz logo que cheguei. Dirigi-me a sua casa e ele recebeu-me com delicadeza. Estava à minha espera, sabia que vinha. Sentámo-nos no seu escritório com vista para o parque e conversámos um pouco sobre o que eu poderia ver durante a minha estadia e sobre os destinos seguintes da viagem que estava a fazer. Questionei-o depois sobre aquelas imagens, o que eram, o que lhe diziam. Tirou o envelope da caixinha, desembrulhou-o, viu-as uma a uma em lentidão e, sem ainda mas mostrar, disse: “sabe, o que me fascina na fotografia é esta ideia de impossibilidade – nunca se mergulha profundamente numa imagem, até porque cada fotografia pede uma história e cada história pressupõe na imagem um halo de impenetrabilidade que nos remete para o campo do mistério, para uma ideia mais próxima da palavra solta que da frase completa, do instinto que do racional”. E continuou: “olho para estas imagens e sei que a minha memória é feita de cinema”. Prosseguiu: “organiza-se em função de uma lógica cinematográfica, ainda que os meus lugares não sejam cenários ou os meus afectos actores”. Mostrou-me uma imagem de Nova Iorque e disse: “olhe para isto: é um fotograma. As duas senhoras atravessam a rua. Enquanto a senhora de vestido branco sai do campo, a senhora de vestido azul vira à nossa esquerda: a câmara vai acompanhar-lhe o movimento e segui-la pelas costas; ao fim de alguns instantes, a senhora de vestido azul compreenderá que eu estou atrás dela. Virar-se-á para mim, eu sou a câmara, vai sorrir-me, vou sorrir-lhe, e o plano acaba, ainda que a história continue. Ou então: as duas senhoras atravessam a rua, a carrinha vermelha arranca, a câmara segue-a até desaparecer no próximo cruzamento ou no Lincoln Tunnel, o plano acaba, e assim sabemos que dessa forma a história se resolve”. Continuou a explicar-me: a organização da sua lembrança aparecia-lhe como uma sucessão de planos num exercício de montagem. Ou seja, lembrava-se de partes da sua vida como cenas de um filme: as viagens como travellings frontais e laterais, as chegadas como planos gerais – e aí mostrou-me a imagem da descida de avião, seguida de outra feita algures na Califórnia. Disse-me “dentro daquele carro cinzento, cortado pelo plano, estava alguém à minha espera; e depois arrancámos para o deserto, que- ríamos lá chegar antes do fim da tarde”. Não me deixou perguntar-lhe se, de facto, naquele carro estaria alguém que o aguardava, se conseguiram ou não chegar ao deserto no tempo previsto. Continuou a discorrer sobre esta mnemotecnia, explicando-me de forma detalhada como é que a recordação que tinha de algumas conversas obedecia a uma rememoração em campo-contra-campo feito de planos aproximados ou de grandes-planos, até. Quando me mostrou a fotografia de Uxmal, disse-me: “vê, este sou eu a preparar-me para me lembrar da minha mulher aqui, neste dia, nesta viagem. Sei dizer-lhe exactamente do que falámos a seguir, o que jantámos nessa noite, que música passava no rádio do carro e que horas eram quando regressámos ao hotel. E enquanto lho digo, o que vejo na minha mente são planos, planos de cinema”. Uma vez mais, não se alongou sobre aquele momento particular, nem sequer me respondeu quando ganhei coragem para lhe perguntar quem lhes tinha tirado aquela fotografia. Ao longo da conversa, disse-me por mais do que uma vez que se toda a sua memória era feita de cinema isso não representava uma vantagem. Insisti que me explicasse essa ideia. Respondeu-me que, desse modo, a sua memória acabava por ganhar uma forma e uma sequência: só pelo cinema e pela fotografia, encarada aqui como fotograma, seria possível ascender ao campo de todas as nostalgias, ao campo onde todos os regressos e reencontros parecem ser possíveis. “E por isso cinema e fotografia são exercícios de cinismo”, dizia: “evocam um regresso de modo provocador. Mas a ilusão está lá, quando olhamos para trás, para o princípio das coisas, e, ao fazê-lo, parece que nos posicionamos para o fim delas”. Explicou-me que era por isso que entendia os cheiros como o último (e o único) reduto de uma memória livre, intransmissível, solta da sua condição cinematográfica; como propulsores de uma ideia mais próxima de uma verdadeira subjectividade, porque os cheiros não eram aprisionáveis pela câma- ra de filmar ou de fotografar. Completou com uma frase de Chris Marker no filme Sans Soleil: “como pode alguém lembrar a sede?” Era assim que viajava, então. Ou melhor, era por isso que viajava, que continuaria a viajar sempre: só dessa forma aleatória – na maioria das vezes os cheiros regressam por acaso – se conseguia aproximar do que chamava ilusão de liberdade, que era também a ilusão do regresso. Voltava à alegria dos seus verões de criança cada vez que inalava a madeira das casas de praia. Aliás, disse-mo, fazia-o de forma discreta quando se encontrava com aquele chei- ro em casas de amigos. Deixava que o aroma tomasse conta, e quase conseguia voltar, eram três quatro segundos de um regresso impossível e confortável: “ali estou eu, a correr com os meus amigos, por entre barcos espalha- dos nas dunas, num cenário que na altura não conseguia compreender”. E esses segundos diziam-lhe que ainda se encontrava lá, que ainda existia no princípio de todas as coisas. “De regresso, sou outro, como quando acabo de ver um grande filme”. Mas sabia que a qualquer instante a nostalgia poderia amargar: era o reverso do acaso, que o fazia sentir temor de cada vez que pensava na lembrança que poderia aparecer caso se cruzasse com o cheiro seco de um quarto antigo, onde lhe morrera alguém muito querido, com a mão amparada na sua. Deteve-se aqui por instantes – talvez já estivesse a rememorar algo – e não se alongou mais sobre o tema. Mostrou-me a última imagem do lote. Campo dei Fiori, Roma, algures nos anos setenta do século passado. Disse-me que sempre que inalava um determinado perfume, se aproximava daquele momento de forma hipnótica: “é o mais próximo que estou de conseguir regressar àquele tempo, bem melhor que qualquer fotograma”. E mesmo sem o perfume por perto, conseguiu dizer-me: “Ali estivemos sob um calor infernal, Verão em Roma, era Julho, ambos a beber água das fontes, a comer esplendidamente, vínhamos de ver os Caravaggios em San Luigi dei Francesi, passámos pela igreja de Santa Maria della Pace, íamos à procura de uma loja que vendia uns cadernos fantásticos para esquissos e rabiscos, e depois pelo fim de tarde jantámos em Trastevere, submersos numa beleza luminosa, como uma cortina de poalha dourada, em silêncio, compreendidos, felizes como num filme” – e assim regressava ao cinema, ao fotograma. Como num círculo. Saí daquela casa fascinado e confuso, a pensar no modo como recordo, que imagens fazem a minha memória, que cheiros a potenciam, como iria lembrar-me desta conversa daí a uns anos. E agora que olho estas fotografias outra vez, e que através delas relembro aquela tarde de Inverno, imagino que conversa aguarda quem as for devolver. |