Ramiro: jogo, figuras e depois
Partida e queda. Comecemos com a seguinte proposição: o cinema é um jogo. Cada filme traz consigo um conjunto de regras, com maior ou menor formalismo, maior ou menor interioridade. Dentro destas linhas, todo um conjunto (um jogo) de ilusões (de jogos) opera (joga). Será talvez por esta lógica de entendimento - que sabemos não excluir nenhuma de todas as outras possíveis - que cada cinema contém, digamos assim, algo que o aproxima da magia, entendendo por esta o processo de transformação de uma coisa noutra, como no feixe de luz que transporta a imagem gravada para a sua projecção. Num plano geral, o jogo de Ramiro perspectiva-se na subtileza, em subtilezas: este é um filme que se apreende como uma linha de uma circunferência longa, composta por um arco de ângulo muito aberto: a curvatura da linha existe, está longe e a sua percepção requer vagar. Fosse então a velocidade uma regra e dir-se-ia que Ramiro é um filme sobre um escritor livreiro que se depara com várias bloqueios – na escrita, nas relações, nos próprios negócios, na sua mais ou menos difícil adaptação ao tempo presente. Não que a velocidade seja uma desvantagem: Ramiro pode ser, de facto, tudo isso. Porém, esta mesma lentidão é o ritmo que nos permite chegar ao plano de pormenor e, daí, a uma deriva por outros terrenos: assim acontece na percepção de que os personagens começam o filme em queda. Não uma queda brusca, acentuada e vertical, antes porém lenta e discreta, como água mole, como a curva aberta. Ramiro (António Mortágua), por exemplo, depara-se com as agruras de a um reconhecido talento como escritor não corresponder a criação. Patrícia (Sofia Marques) com a não correspondência afectiva (também denominada singularidade) de Ramiro. A Avó (Fernanda Neves) com parafasia, e Daniela (Madalena Almeida), a neta, com uma gravidez juvenil e o seu pai biológico (Vítor Correia) na prisão. Processos que se traduzem numa dureza que existe, mas que o é em contenção, sem agressividade ou brusquidão, discreta e persistente como um som grave horizontal que corre desde o princípio sob uma falsa inaudibilidade. Nada mais se sabe: entramos num jogo sem início, chegamos ao filme com a certeza de que algo que não temos que compreender absolutamente já vem de trás, de que alguma coisa já começou ainda que nada tenhamos perdido – uma ignorância que logo nos vai afastar da tirania dos julgamentos (por outras palavras, dos porquês das coisas). E, a partir daqui, o jogo opera a sua lógica, accionando os fluxos do acaso que nos transportam história fora. Figuras e espaços Característica de Manuel Mozos, as personagens, habitantes ou passageiros dos seus territórios, acontecem numa marginália também ela grácil, longe de qualquer extremo acentuado entre bons e maus, heróis e vilões. Não há em Ramiro - como não há em Xavier (2002) – uma codificação, uma simbologia que nos permite uma apreensão automática do papel de cada um no filme. Não só das personagens principais (curiosidade: ambas dão título aos filmes, sem que lhes retirem espaço para outras presenças), mas também de todos os que lhes estão à volta. Esta recusa de tipificação (por outras palavras, esta recusa de uma estereotipia) singulariza o cinema de Mozos, um cinema distante da rapidez e das polaridades, dos juízos e dos rótulos: estratégias de recurso frequente para uma linguagem que, por existir com tempo certo, convencionou ter que contar depressa (um desafio a este propósito: entender o tempo e o modo como compreendemos que Ramiro não tem carta de condução). Por isso, as figuras filmadas por Mozos, e escritas, neste caso, por Telmo Churro e Mariana Ricardo, são densas, complexas e inconstantes, sem que a tais predicados corresponda o peso das categorias. Aqui reside outra subtileza do jogo: compreendê-las sem ajuizar, aceitá-las na sua passagem pelo mundo filmado, não necessariamente boas ou más, felizes ou tristes. É desta forma que lhes somos próximos, é por isso que permanecem connosco depois dos créditos. A começar no exemplo de Ramiro: assume a paternidade adoptiva de Daniela, numa ternura que tem tanto de infinita como de contida; ampara a Avó, mas perturba-se com a sua limitação; liga-se a Patrícia mas atrapalha-se no conforto que lhe consegue dar. É um escritor de culto que, quando supera o bloqueio criativo, perde o manuscrito numa noite de copos. Através deste paradigma, manobrado por Mozos dentro das próprias figuras e da sua psicologia, vamos lentamente dando conta de estarmos num processo de maravilhamento por uma ideia de normalidade, cativados numa história comum, sem sobressaltos ou picos de euforia, ainda que eles lá estejam todos em potência – e sabendo nós que o difícil, no processo, é resistir à tentação das explosões. Ora, este princípio da maravilha, quando praticado num jogo destes, implica não só a já referida subtileza, mas também uma profunda capacidade de saber contar, de saber jogar, de saber depurar o pormenor, da escrita à filmagem, da iluminação à montagem. E Ramiro é, nesse aspecto, um manifesto no qual os acasos das histórias se contrapõem ao rigor e ao critério de tudo o que, sob a ilusão do acessório, gira em seu redor. Três pequenos exemplos, (apenas em torno dos livros, perante a impossibilidade atlântica de uma completa taxonomia de detalhes preciosos): o programa de televisão “Os Livros em Volta”, numa alusão a Herberto Helder, o corte que daí nos leva para uma sala onde Ramiro, de facto, está com livros em volta e, mais tarde, quando o filme volta àquele espaço, lá vemos, discreto, o Som e a Fúria de William Faulkner. E depois, o espaço onde as histórias acontecem, sempre com o fascínio de Mozos pela noite (Ramiro é também um nocturno) e pelas demarcações: a cidade, já não a expandir-se, como no passeio pela Ameixoeira em Xavier – vénia à deriva de Ilda e Júlio no Parque da Bela Vista em Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963) – mas sim a transformar-se noutra coisa no seu centro e na sua própria ruína nas margens: quando Ramiro vai à Quinta da Torre, vai a um local de crime hediondo, uma margem híbrida entre o edificado e o abandonado, um lugar onde está assustado. E a cidade já não é também tão óbvia nos lugares – é Lisboa, certo, mas poderia ser qualquer Algures, Portugal (salvo uma ou outra identificável excepção e a característica alvura). Intervalo (espelhos) A ideia remonta a 2009. Os argumentistas Telmo Churro e Mariana Ricardo aproximam-se de Mozos com a história de Ramiro. Entre debates e acertos, Ramiro fixa-se em argumento e torna-se cinema. Poder-se-ia começar pelo título e, convocando a regra da velocidade, dizer que de imediato se apreende que o que aí vem decorrerá à volta da personagem. Porém, logo que o filme começa e os tempos (o da obra e o do cinema) desaceleram, Ramiro é já mais que ele próprio. De certa forma, é um reflexo de Manuel Mozos, escrito por Churro e Ricardo e filmado pelo homem atrás do espelho: Mozos ele mesmo. E é-o em expressões coloquiais (o humor discreto, porém incisivo), na resistência a um exagero reactivo face ao que nos incomoda (a suave adaptação de Ramiro à Casa de Tapas, a não dramatização da perda do manuscrito), na resistência a uma ideia de sobrevivência pela tecnologia (o desuso de aparelhos e o uso de cadernos). Afinal, Ramiro é um filme, é o seu realizador, a sua personagem e, claro, um jogo. Ou não fosse um Jean-Luc Godard quem aparece a Ramiro no mercado do livro, mesmo em frente a um exemplar de Bande à Part, escrito por Jacques Perret. O depois é ontem Retomando: Ramiro é um filme no qual o espectador frui a ilusão de um nada-acontecer (porque associada à curva longa, porque parte de um jogo). Nesta altura, estamos já no plano de um outro tempo; e a história, como que por magia, está a acontecer. E este plano de outra temporalidade não se fixa apenas no já referido tempo lento (onde, senão no cinema, há tempo para remendar um sofá com fita adesiva?), mas também, na compreensão de um tempo antigo, não necessariamente velho ou ultrapassado, mas apenas distante da velocidade das tecnologias, da actualidade dos espaços. E esta ideia de low-tech que se contrapõe à vertigem das actualizações e do modelo último, é tudo menos uma desvantagem: em Ramiro, não há internet e o filme é dos dias de hoje. Em Ramiro, o papel volta para a frente do digital – assim, por exemplo, com o ensaio perdido da personagem, com os livros, com gráfica que imprime – e não há actualidade que se perca. A descaracterização do tempo torna Ramiro numa obra sem tempo – o que, como sabemos, a mantém no presente, desligada do epifenómeno da datação. Mas em Ramiro há também um outro tempo, o tempo passado que se projecta e funciona no tempo de hoje: há a música dos Heróis do Mar, a máquina de bolas-surpresa, o microfilme, a telenovela que se vê à noite numa televisão de cinescópio, a escola com mapas antigos, as aulas em salas anteriores à reforma do parque escolar, as pessoas que escrevem coisas em papéis e procuram livros: estamos já num plano de resistência, de uma resistência que, pela presença de um hoje onde as histórias acontecem e interessam, se afasta radicalmente de um simples exercício de nostalgia. Por outras palavras, voltamos a olhar para o que já fomos, voltamos a ser outra vez: existimos para além dos aparelhos. E por fim, a balada. Ramiro é assim uma balada à qual chegamos quando tudo parece estar em queda. Porém, com o devido tempo e na devida contenção, o caminho que fazemos pelo filme vai-se desprendendo do triste, numa aceitação de que chegarão dias melhores. Mozos, com a delicadeza inerente à melancolia, faz de Ramiro um elogio de um quotidiano no qual euforia e tristeza confluem numa espera, numa espera onde gostamos de nos rever, onde gostamos de estar, contra toda a probabilidade dos dias em que vivemos. Com Ramiro há ainda lugar para um cinema (para um jogo, portanto) delicado no tempo e no modo, subtil na esperança com que se fecha. O autor agradece a Manuel Mozos e a João Rosmaninho as contribuições para a escrita deste texto. |